Artigo – Trabalho Infantil – escrito pela juíza Sandra Miguel Abou Assali Bertelli


 Trabalho Infantil: uma afronta ao trabalho decente

 

“Lápis, caderno, chiclete, pião
Sol, bicicleta, skate, calção
Esconderijo, avião, correria, tambor, gritaria, jardim, confusão

 


Bola, pelúcia, merenda, crayon
Banho de rio, banho de mar, pula cela, bombom
Tanque de areia, gnomo, sereia, pirata, baleia, manteiga no pão

 


Giz, merthiolate, band-aid, sabão
Tênis, cadarço, almofada, colchão
Quebra-cabeça, boneca, peteca, botão, pega-pega, papel, papelão

 


Criança não trabalha, criança dá trabalho
Criança não trabalha…”

 

Trecho de “Criança Não Trabalha” – letra de Paulo Tatit e Arnaldo Antunes, grupo musical Palavra Cantada

 

Qualquer reflexão que envolva desrespeito aos direitos humanos não pode passar ao largo de uma das mais perversas formas de exploração do homem: o trabalho infantil.

 

Abstrai da criança uma parte importante de sua vida, comprometendo-lhe a formação física, pessoal, moral, psicológica e intelectual.

A criança e o adolescente submetidos ao trabalho precoce são alijados do regular processo de crescimento e desenvolvimento, eis que lhes é imposta uma responsabilidade de adulto.

Além de sujeitar a criança a influências que podem afetar a formação de seu caráter, o risco de acidentes de trabalho é potencializado [1].

O ingresso prematuro no mercado de trabalho perpetua uma realidade cruel e irreversível. Ao iniciar uma vida profissional antes do tempo, a criança é privada de formação educacional mínima a garantir-lhe cidadania e efetiva inserção social. Torna-se um adulto mais vulnerável à exploração, forte candidato ao trabalho realizado em condições indignas e precárias, à margem de proteção legal.

E a exploração não acaba por aí, fomentando uma verdadeira rede de trabalho infantil. Ao constituir família, a vítima de ontem acaba por transferir aos seus filhos a idéia equivocada de que o ingresso precoce no mercado de trabalho é a chance de futuro. E assim o faz, embalado pela crença equivocada de que o trabalho é válvula de escape da miséria e dos vícios.

Serão gerações e gerações marcadas pelo estigma da infância roubada. Sem formação escolar.  Sem cidadania plena.

Esta geração de trabalhadores infanto-juvenis colabora para a construção de uma sociedade mais desigual, menos inclusiva, menos justa, menos solidária, menos cidadã, alimentando a roda da desigual distribuição de renda.

Como reverter esse processo social degenerativo?

Educação, eis a resposta. É por meio da EDUCAÇÃO, básica, gratuita e universal, do investimento nos pilares fundamentais deste eficaz instrumento de inserção social e efetivação da CIDADANIA.

A partir de uma análise da evolução histórica da América Latina, desde a chegada do colonizador europeu, passando pelo período da escravidão e aportando nos dias atuais, observamos que o aviltamento dos direitos humanos têm sido uma constante.

Dentre os diversos fatores – de ordem econômica, social, política e cultural – que colaboraram diretamente para essa triste realidade, destacamos a falta de investimento responsável na educação.

Os projetos de caráter sócio-educacional promovem, a um só tempo, a formação do cidadão para os novos desafios do mundo contemporâneo e sua inclusão social.

A implementação de políticas públicas garantidoras da educação plena e de qualidade não deve mais ser vista como mera proposta romântica, mas sim uma iniciativa indispensável à sobrevivência de qualquer modelo político que objetive o desenvolvimento de uma nação.

E a sociedade, atenta a essa realidade, tem dado os primeiros passos rumo à mudança. Em vários fóruns o tema vem sendo colocado em pauta.

Destaque merece a I Conferência Nacional de Trabalho Decente 2] promovida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, ocorrida em Brasília no período de 8 a 11 de agosto. Na ocasião, foram aprovadas várias diretrizes para a construção de uma agenda de trabalho decente, destacando-se, dentre elas, as seguintes: (1) articulação de políticas públicas tendentes ao investimento na educação como forma de combate ao trabalho infantil; (2) afirmação da competência da Justiça do Trabalho para o enfrentamento dos pedidos de autorização judicial para o trabalho do adolescente. 

Na mesma toada, a Justiça do Trabalho também vem dando sua valorosa contribuição para a erradicação do trabalho infantil, valendo ressaltar a participação no I Encontro sobre Trabalho Infantil[3], promovido pelo CNMP, o que lhe rendeu assento num comitê interinstitucional para o cumprimento do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. Trata-se de mais uma conquista histórica da Justiça do Trabalho.

Norteada pelo princípio da proteção integral (art. 227 da Constituição da República) e pela crença de que o direito de acesso à escola é o caminho para a erradicação do trabalho infantil, a Justiça do Trabalho também obteve, no referido Encontro, o reconhecimento de sua competência para a apreciação dos pedidos de autorização judicial para o trabalho do adolescente.

Estas menções que fiz a fóruns de debates sobre o tema têm por objetivo destacar que somente podemos evoluir na erradicação do trabalho infantil se o enfrentamento do problema for qualificado, tendo como nortes as seguintes medidas:

a) investimento em políticas públicas comprometidas com a educação e cidadania, instrumentos efetivos para a inserção e a ascensão social qualificada, que descartam as práticas meramente compensatórias, colocando fim ao perverso ciclo que perpetua a pobreza e a violação aos direitos humanos;

b) não concessão de alvarás judiciais (em descompasso como os artigos 7º, inciso XXXIII e 227 da CRFB) para o trabalho infantil [4]; aqui tocamos também na questão da competência da Justiça do Trabalho, que bem conhece esta realidade e, portanto, está mais afeta a estas questões.

 

c) não redução da idade mínima[5] para o trabalho; propostas que defendam bandeira contrária representam retrocesso às conquistas sociais consolidadas na Constituição Cidadã, art. 7º, inciso XXXIII.

  E para concluir, faço um convite à reflexão: de nossa história, marcada pelo passado escravista e colonialista, devemos extrair uma autocrítica, destinada ao enfrentamento da raiz de nossos problemas. Somente poderemos nos projetar, como País em pleno desenvolvimento, como democracia consolidada, se nos ocuparmos de nossas crianças e jovens, retirando estas gerações das ruas e mandando-lhes de volta aos bancos escolares. 

Criança não trabalha, criança dá trabalho. Esta frase, por encerrar tamanha sabedoria, não deve ficar restrita apenas ao refrão da música do grupo “Palavra Cantada”. Deve ser entoada como um hino, retumbando de maneira firme e passando a ser o norte para a implementação de políticas públicas que invistam efetivamente na formação do homem e do cidadão.

É assim que se constrói cidadania. É assim que se firmam os alicerces para a edificação de um país mais justo e solidário.

 

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[1] Em estudo desenvolvido sob a orientação da Organização Internacional do Trabalho, foram identificados pelo menos nove motivos pelos quais a criança não deve trabalhar: 1) não tem ossos e músculos desenvolvidos, podendo sofrer deformações irreversíveis; 2) a ventilação pulmonar é reduzida, ficando mais suscetíveis a intoxicações; 3) o fígado, o baço, o estômago e os rins ainda não se desenvolveram, razão pela qual as intoxicações são mais comuns; 4) tem frequência cardíaca maior, chegando mais rapidamente à exaustão; 5) como o sistema nervoso está em desenvolvimento, sob pressão intensa, perde capacidade de concentração e memória, o que compromete o rendimento escolar; neste contexto, ficam mais vulneráveis aos problemas psicológicos decorrentes da pressão no trabalho; 6) o corpo produz mais calor que o do adulto, levando à desidratação mais rapidamente; 7) a pele é mais fina, mais frágil à queimadura, cortes e intoxicações; 8) a visão periférica ainda não está completa, ficando mais sujeita a acidentes; 9) o sistema auditivo ainda está em formação, por isso tem propensão a perder mais facilmente a audição. Com fundamento nestas premissas, o art. 7º, inciso XXXIII da Constituição da República, objetivando a proteção integral da criança, proibiu o trabalho noturno, perigoso e insalubre a menores de 18 anos.

 [2] O TRT/SP, a Amatra 2 e a Anamatra participaram da I Conferência Nacional de Trabalho Decente. 

   

[3] A participação da Justiça do Trabalho no I Encontro sobre Trabalho Infantil promovido pelo CNMP efetivou-se por meio de uma comissão formada por juízes do trabalho de diversas regiões do País e instituída pelo TST.

 

[4] Enunciado 18, extraído da 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, promovida pela Anamatra, TST e ENAMAT: “PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL. TRABALHO DO ADOLESCENTE. ILEGALIDADE DA CONCESSÃO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. A Constituição Federal veda qualquer trabalho anterior à idade de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos (art. 7º, inciso XXXIII, CF, arts. 428 a 433 da CLT). Princípio da proteção integral que se impõe com prioridade absoluta (art. 227, caput), proibindo a emissão de autorização judicial para o trabalho antes dos dezesseis anos”.

  

[5] A Convenção 138 da OIT, embora estabeleça a idade mínima de 15 anos – eis que vinculada à idade de conclusão de escolaridade compulsória -, em seu art. 1º, parágrafo 2º, recomendou que os países signatários estabelecessem idade mínima superior a esta.