Congresso da Anamatra: Juiz Fábio Rodrigues faz relato de júri simulado promovido durante evento

 Assédio sexual no trabalho e sua apreciação pela Justiça norte-americana


Ao longo deste VII Congresso Internacional da Anamatra, os juízes brasileiros foram apresentados às diversas peculiaridades do sistema normativo e também do modelo judicial dos EUA. E uma boa maneira de sintetizar ambas as experiências será por meio de uma breve descrição do Júri Simulado promovido no Tribunal Federal de Maryland (T.H v. Município de Price George, n. 09-3431).

Como tivemos a oportunidade de aprender neste evento, os norte-americanos dividem as atribuições institucionais para a resolução dos problemas trabalhistas. Por aqui, as questões de direito coletivo (labor law) são analisadas originariamente por uma agência reguladora chamada National Labor Relation Board (NLRB) e apenas depois de esgotada esta esfera administrativa é possível acessar o Poder Judiciário, através de petição dirigida à Corte Federal de Apelação (Court of Appeal).
 
Já as querelas envolvendo direito individual, incluindo-se aí a discriminação (employment law) e o assédio sexual (sexual harassement), são apreciadas judicialmente desde o início e, mais especificamente, por um juiz federal de primeira instância (district judge). Foi exatamente esta última hipótese que nos foi apresentada no dia de hoje.

A validade das discriminações, de um modo geral, é verificada a partir do critério eleito para a efetivação da distinção do tratamento e da relação de coerência entre este critério e a finalidade que se pretenda atingir. No Brasil, o art. 7, XXX da CF/88 proíbe o uso da raça, do gênero e da idade como fatores decisivos para a seleção, promoção, punição e mesmo a rescisão do contraído de emprego (vide, por exemplo, a recente Súmula n.443 do TST). Nos EUA esta vedação também existe, mas sua previsão está no Título VII de uma Lei mais geral, que fala sobre direitos civis (Civil Rights Act, 1964).

Portanto, quando há uma alegação fundamentada de discriminação do empregador, calcada em um daqueles parâmetros proibidos (e não nos esqueçamos de que o assédio sexual normalmente traz embutida uma discriminação de gênero), o Juiz distrital é provocado a agir. Mas aí surge uma das peculiaridades a que me referi. Ele, de plano, tem a função de ouvir a sustentação oral das partes, a reclamação do autor (complain) e a tentativa do réu de arquivar o processo (motion of dismiss), a fim de decidir se levará ou não o caso para audiência (hearing). Somente se aceitar a razoabilidade do argumento do autor (ou dos autores), marcará a data do julgamento a ser realizado (civil trial).

A propósito, mesmo percebendo a solidez da acusação, o juiz pode encaminhar as partes para uma conversa preliminar sobre um possível acordo (settlement of discution), sob a assistência de um juiz-adjunto (magister judge). Inexistindo consenso, retoma-se o caminho judicial.

A audiência em si também guarda suas diferenças com relação ao que conhecemos no Brasil, a começar pela disposição da sala. Nos EUA, as partes e seus advogados ficam em mesas separadas, colocadas lado a lado e de frente para o juiz togado. Este, por sua vez, posiciona-se numa bancada bastante alta para os nossos padrões, simbolizando o seu distanciamento (imparcialidade). E nas laterais desta bancada ficam as cadeiras onde são inquiridas as testemunhas. Por fim, entre o juiz e as partes fica o "Box Jury", isto é, o local em que se assentam de 06 a 12 jurados responsáveis pela solução da controvérsia.

Nesta altura, algumas podem se perguntar: um júri? Mas não era para ser uma simulação de audiência trabalhista? Sim, era para sê-lo e assim foi feito. Acontece que as questões individuais são decididas por um corpo de jurados e não pelo juiz, na maior parte das vezes. A este cabe, em regra, manter a ordem no tribunal e, principalmente, a administração da fase instrutória (management of evidency), garantido o seu regular prosseguimento. Bloquear perguntas impertinentes (acolhendo o famoso protesto à moda americana – "sustaining objection"), garantir a resposta às perguntas dos advogados, ao indeferir os protestos sobre as perguntas pertinentes (overruling objection), analisar a adequação e tempestividade das provas requeridas, de modo a
evitar surpresas (pois os litigantes tem o direito de saber previamente o que ou quem o seu adversário pretende levar em juízo). Muito excepcionalmente também faz algumas perguntas às partes e testemunhas ou, ainda, se, após a instrução, reputar o caso carente de lastro probatório, absolve o acusado, prescindindo da manifestação do Júri. Mas, como enfatizado, esta é uma exceção. O habitual é que a decisão caiba aos jurados, cuja importância é tanta, que podem ser excluídos ab initio, se demonstrada o que chamamos no Brasil de sua suspeição ou impedimento.

Feita uma breve exposição pelas partes de suas versões (briefing presentation), faz-se a produção probatória (depoimentos pessoais, oitiva de testemunhas e dos peritos trazidos pelas partes e vista de documentos) e conclui-se com as alegações finais (final alegations). O júri, então, é advertido e instruído pelo juiz a respeito de suas responsabilidades e da forma como devem sopesar as evidências. Em seguida, eles se reúnem em uma sala própria (e fechada) para deliberação, que pode demorar de 45min à 2h. Ao retornarem, respondem à quesitação feita pelo juiz e emitem o veredicto. Para que o empregador seja considerado culpado a decisão deverá ser unânime. E, quando isso acontece, impõem-se valores nada agradáveis para o bolso do assediadores.

Como em todos os sistemas, há os seus prós e contras. A democratização do processo e do próprio Judiciário é, certamente, um lado positivo, pois, em minha opinião, o envolvimento direto do cidadão na solução judicial dos problemas gera um maior comprometimento da sociedade com o cumprimento espontâneo do direito que a regulamenta. O lado negativo talvez seja o incentivo à utilização de uma retórica feita para seduzir o júri. Sempre que a natureza do processo permite, os advogados fogem do argumento técnico e se enveredam pela sensibilização dos jurados, tenteando fazê-los enxergar o seu cliente de um modo mais ameno ou, quiçá, perdoá-los pelos erros cometidos.

Trata-se de um desenho institucional que, num primeiro momento, pode até causar desconforto. Especialmente para nós, juízes brasileiros, acostumados a vincular a decisão das controvérsias trabalhistas a um raciocínio quase linear, derivado de um silogismo lógico-formal que aparentemente deixa pouco espaço para a emoção dos não-iniciados.

Mas, se prestarmos atenção ao que se faz aqui e nos despirmos dos preconceitos que a praticidade e a flexibilidade do common law nos inspiram, é provável que nos deparemos com bons exemplos. 
Para começar, a execução (enforcement) é uma outra exceção encontrada por estas paragens, pois pouquíssimos americanos ousam desafiar ou afrontar a decisão judicial. Cumpri-la espontaneamente é o que se espera do perdedor e o que se observa, efetivamente, no dia a dia forense. Não será este respeito institucional, ao menos em parte, decorrente deste maior envolvimento popular e, por conseguinte, da maior legitimidade do seu veredicto? E, se for, estamos prontos a aprender com eles?

Estas são algumas das dúvidas construtivas que este notável Congresso Internacional da Anamatra nos tem proporcionado. Nós, os curiosos juízes do trabalho, que viemos conhecer de perto este sistema tão incomum, voltaremos para as nossas casas e para os nossos tribunais com muito sobre o que pensar em nossas bagagens.
 
Por Fábio Rodrigues Gomes
Juiz Titular da 41ª VT/RJ