22 de março de 2021 . 14:01

‘A arma mais poderosa para uma mulher é a educação’, diz Ana Larissa Caraciki

Na coluna “Mulheres, por elas mesmas” desta segunda-feira (22), a juíza do Trabalho Ana Larissa Lopes Caraciki Montenegro publica o artigo “A arma da mulher é a educação”. A partir da leitura do livro “A Menina da montanha”, um relato autobiográfico da escritora norte-americana Tara Westover, a magistrada refletiu sobre a importância de se dar acesso pleno aos estudos às meninas e às mulheres se o que queremos é uma sociedade mais igualitária.

O texto integra o projeto desenvolvido pela Diretoria de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1 para marcar o mês do Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março. A cada segunda-feira deste mês, uma magistrada publica um artigo sobre questões de gênero no site da associação.

A arma da mulher é a educação”, por Ana Larissa Lopes Caraciki Montenegro

Não saber ao certo, e me recusar a ceder àqueles que alegam ter certeza era um privilégio que nunca tinha me permitido antes. Minha vida foi narrada por outros. Suas vozes eram vigorosas, enfáticas, absolutas. Nunca me ocorreu que minha voz pudesse ser tão forte quanto a deles. (Tara Westover - “A Menina da montanha”)

“A Menina da montanha” foi uma das minhas primeiras leituras da quarentena, e foi tão impactante que elenquei o livro entre os cinco melhores que já li. Em um período de tantas incertezas e desesperanças, pude, através dele, me reconectar com a força que toda mulher carrega dentro de si para mudar a sua história e a daqueles que a rodeiam, não importando as barreiras que possam ser colocadas a fim de que tudo se mantenha igual no sistema patriarcal.

A norte-americana Tara Westover, nesta autobiografia, expõe de forma crua e sem filtros sua infância e adolescência em uma família praticante do mormonismo, habitante de Idaho. A região montanhosa ao norte dos Estados Unidos faz fronteira com o Canadá.

Em razão do radicalismo de seu pai, Tara e mais quatro irmãos crescem sem registros de nascimento, sem ir à escola ou receber qualquer instrução em casa, sem acesso a hospitais, vacinas e remédios, sob o argumento de que as instituições visavam retirar as liberdades dos indivíduos, e de que uma catástrofe apocalíptica estaria prestes a acontecer.

Nos seus primeiros 16 anos, Tara é forçada a auxiliar no trabalho no ferro-velho mantido pelo pai em seu quintal, sofrendo diversos tipos de acidentes e presenciando o mesmo acontecer em relação aos seus irmãos. Os acidentes são narrados com uma riqueza de detalhes de deixar o leitor nauseado. 

Em um ambiente familiar em que imperava o machismo e o fanatismo, tolerado e reproduzido por sua própria mãe, Tara é vítima óbvia de violências física, verbal e psicológica, praticadas por seu pai e um de seus irmãos.

Aos 17 anos, idade que já a tornava apta a casar, desde que o pretendente compartilhasse do mesmo ideário de seu pai, Tara rompe com um destino de mera reprodução do que havia vivido até então, e obtém a admissão em uma universidade. Nos Estados Unidos, é reputado válido o homescholing, desde que efetivo. 

No caso de Tara, foi necessário omitir as graves deficiências em sua educação pretérita, a fim de que sua admissão fosse mantida, mas as dificuldades estariam apenas começando. Só nos bancos da universidade ela ouviu falar pela primeira vez sobre os horrores do Holocausto e da escravidão africana e em território americano. 

Para Tara, a História Mundial passou a ser recontada, além da ótica de seu pai, e então ela pôde acessar fatos de sua própria existência. Fatos estes que seriam apenas criações de sua mente, segundo a família a convenceu a acreditar.

Com muito esforço, contra as dificuldades culturais e financeiras, e as inúmeras resistências colocadas por sua família, Tara consegue se destacar na universidade. Graduou-se como Mestre e Doutora em universidades das melhores do mundo. E o principal: pôde se manter viva para contar a própria história.

Eu acredito no poder redentor da educação, e histórias como a de Tara, e também a da paquistanesa Malala Yousafzai, apenas reforçam que a arma mais poderosa para uma mulher é a educação, que a desperta para contestar os abusos de todas as espécies, abre possibilidades para obter liberdade financeira e apresenta um vasto mundo para conquistar e sonhar. 

Contudo, o Brasil sonega essa oportunidade a cerca de 1,7 milhão de meninas e mulheres entre 15 e 29 anos (26% da referida faixa etária, mais que o dobro de meninos e homens na mesma idade), que não concluíram o ensino médio, não estudam nem conseguem postos de trabalho (fonte: http://www.generonumero.media/meninas-sao-mais-do-que-o-dobro-dos-meninos-entre-jovens-que-nao-completaram-ensino-medio-e-nao-exercem-atividade-remunerada/ - acesso em 13.03.2021).

Fatores como pobreza, gravidez precoce, necessidade de buscar sustento familiar ou de prestar assistência a irmãos menores, ou ainda a parentes idosos afastam anualmente milhares de meninas e mulheres dos bancos escolares e universitários, e de empregos formais com padrões mínimos de segurança.

Essa reinserção tem perdido cada vez mais espaço na agenda política nacional, em que pese constar dentre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (4.5 – educação e 5.c – igualdade de gênero), a chamada Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas. O Brasil aderiu aos ODSs, junto a outros 192 países, em setembro de 2015. 

O engajamento brasileiro em relação a melhorias no campo educacional sempre foi notoriamente baixo, o que, certamente, irá se intensificar com a pandemia da Covid-19 e com os imbróglios políticos e institucionais que deixam em segundo plano qualquer conduta concreta. Para grande parte dos ocupantes de cargos de poder, oriundos de ambientes predominantemente masculinos, é interessante manter as mulheres alijadas do conhecimento que embasa a formação de senso crítico e de cidadania ativa.

Incluo-me dentre muitas magistradas e operadoras do Direito que construíram seu presente e constroem seu futuro com as próprias mãos, conquistando, com muito custo, seu espaço em uma sociedade que apresenta poucas oportunidades para meninas, principalmente as que provêm de classes mais baixas.

Portanto, toda vez que uma menina ou uma mulher perde o direito à educação, toda a sociedade perde a oportunidade de se tornar menos desigual e retrógrada, e mais inclusiva e próspera. 

Ana Larissa Lopes Caraciki Montenegro

Juíza do Trabalho Substituta no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região

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