19 de março de 2021 . 15:28

Artigo do juiz Paulo Périssé no ConJur: ‘O ativismo bem compreendido’

O juiz do Trabalho e professor Paulo Guilherme Santos Périssé, ex-presidente da AMATRA1, publicou no ConJur, nesta quarta-feira (17), um artigo em que propõe uma reflexão sobre o debate jurídico brasileiro atual à luz do clássico “Democracia na América”, de Tocqueville. O juiz aponta em seu texto que “o chamado ativismo judicial contemporâneo é geralmente percebido como uma patologia”, e conclui que “a própria sociabilidade mediada pelo Direito está sob ataque”. “Rebaixar as tensões” é necessário, acredita Périssé.

Confira a íntegra do artigo:

O ativismo bem compreendido

No seu clássico “Democracia na América”, Tocqueville acreditava ter descoberto a fórmula que permitia aos estadunidenses conciliar seus interesses privados com as responsabilidades públicas indispensáveis para o florescimento do ainda enigmático experimento democrático na América do Norte.

É bastante conhecida a expressão “interesse bem compreendido”, registro fundamental das suas análises, com a qual procurava apontar como a busca pela satisfação dos interesses privados naquele cenário foi alinhada às responsabilidades e aos valores comunitários compartilhados pela população. O ineditismo desse experimento da vida cotidiana, na visão do aristocrata francês, consistia em selar o compromisso necessário para animar a vida pública e estabelecer laços de solidariedade fundamentais para a vitalidade democrática. 

Entretanto, o perigo de perversão rondava essa sociabilidade ativa, justamente quando o sucesso de uma vida de conquistas, luxos e prazeres sem limites poderia romper com esse equilíbrio naturalmente instável, e conduzir ao individualismo exacerbado, sem compromissos com formas virtuosas de convívio social. Aqui, era a liberdade que ameaçava dissipar-se.

Sob o olhar atento do observador, esse diagnóstico pode animar o debate jurídico brasileiro atual, quando parecem surgir oposições no campo dogmático, com visões estanques separando neopositivistas e aqueles adeptos de um Direito reflexivo, permeável aos impulsos sociais. 

Como em “Democracia na América”, seria o caso de nos interrogarmos a respeito do quanto preservamos ou não alguma forma de sinceridade constitucional quando nos deparamos com julgamentos de casos sensíveis no cotidiano da atividade jurisdicional. Nessas ocasiões excepcionais, nosso sistema de Justiça estaria reforçando ou não o projeto imaginado pelo constituinte original? Seríamos devedores de alguma forma de ativismo bem compreendido?

Antes de tudo é importante frisar que o protagonismo das instituições do mundo jurídico e o ativismo daí resultante têm relação direta com o projeto político constitucionalizado, dentro do qual seus personagens foram posicionados estrategicamente para permitir e fortalecer uma nova sociabilidade. 

Nesse sentido, menos relacionado ao posicionamento do intérprete diante da dogmática jurídica, com a adesão ou não ao positivismo reformulado, o ativismo judicial seria uma consequência esperada em função da tarefa conferida ao sistema judicial por parte do constituinte de 1988. 

Observado o problema por tal ângulo, abre-se uma perspectiva renovada para a crítica do chamado ativismo judicial contemporâneo, geralmente percebido como uma patologia do sistema judicial brasileiro. 

De fato, um dos pontos-chave para compreender esse processo tem relação com a estratégia segundo a qual a concretização do sistema de direitos constitucionalizado seria dependente de uma compreensão prévia por parte dos atores do mundo jurídico acerca do seu papel, particularmente daqueles integrantes do Poder Judiciário, instituição a quem caberia um “papel ativo” (Cittadino, 2004, p.14). *1

Poderíamos afirmar assim, na linha do esquema analítico toqueviliano, que uma espécie de ativismo bem compreendido seria condição indispensável para que tais atores pudessem desempenhar esse papel. 

Portanto, nos distanciando dessa disputa dogmática, seria interessante observarmos os seus pressupostos, vale dizer, as motivações não explicitadas que conduzem esses argumentos, e, para isso, seria importante ter em conta as pré-compreensões dos atores envolvidos nessas disputas. Como bem coloca Habermas (2003,p.124): *2 

“(...) Para entender os argumentos e decisões que acompanham as respostas dadas pelos atores a algo, é necessário conhecer a imagem implícita que eles formam da sociedade como um todo, além de saber que estruturas, realizações, potenciais e perigos eles atribuem à sociedade contemporânea, quando tentam realizar a sua tarefa, que é a de concretizar o sistema dos direitos”. 

Ainda que não seja este o espaço para fazer tal análise exploratória, esse seria um caminho promissor para compreendermos melhor os rumos tomados pelas instituições do sistema judicial brasileiro. 

Isso porque o grande dilema do Direito brasileiro, particularmente a partir de 1988, foi compatibilizar a mediação entre as diversas e fragmentadas formas de expressão e organização sociais, com o objetivo maior do projeto político constitucionalizado de construção de uma sociedade mais igualitária e solidária. Dar ao projeto esse senso de destino comum seria uma tarefa central conferida ao sistema judicial. 

Justamente a criação dos laços de solidariedade que dariam sentido à base normativa do tipo comunitário inscrita na Constituição Federal envolvia, no caso brasileiro, uma tarefa ainda por cumprir-se. Nesse caminho, a nova institucionalidade seria indispensável para dar passagem ao cidadão comum organizado, razão por que seria fundamental o papel dos atores do sistema de Justiça e seu compromisso com o pacto político. 

Nesse arranjo, o sistema jurídico seria um dos elementos estruturantes fundamentais da nova ordem. Uma estratégia, talvez uma aposta, de alto risco, especialmente porque essas instituições estiveram alheias ao processo de transformação política, do qual suas cúpulas participaram de forma acanhada, preocupadas com a defesa dos seus interesses corporativos (Carvalho, 2017). *3

O fato é que esse modelo tensionava o papel do ator e colocava as instituições do mundo do Direito, especialmente o Poder Judiciário e o Ministério Público, diante da necessidade de levar adiante essa agenda. 

Desse ponto, assumida a tarefa, os anos 1990 foram caraterizados pelo embate entre aqueles que defendiam um papel mais ativo dessas instituições para tornar efetivo o catálogo de direitos inscrito na Constituição Federal e aqueles que relutavam em trilhar esse caminho refugiando-se na neutralidade do Direito e de seus intérpretes (juízes e procuradores). *4 

Percebe-se, portanto, como a consolidação de um compromisso compartilhado dentro campo jurídico com a afirmação do projeto constitucional sempre foi marcada por essa dicotomia sobre a melhor forma de torná-lo efetivo. 

De algum modo, esse conflito hoje reaparece na contradição entre o chamado ativismo judicial defendido por aqueles que vêm juízes, promotores e procuradores como verdadeiros engenheiros sociais, vocacionados para mudar o mundo a partir de sua atuação cotidiana e aqueles que mais recentemente retomam a linguagem da neutralidade desses atores, na lógica de um positivismo jurídico renovado ou do neopositivismo. 

Seja qual for o caminho explorado nesse embate, o ponto em comum parece ser o distanciamento daquele papel a ser desempenhado por essas instituições dentro do desenho imaginado pelos constituintes brasileiros. 

A questão é até que ponto ao ativismo com o qual estamos lidando, submetido a severas críticas, pode ser oposto o pretenso papel inanimado do intérprete como mero aplicador de uma dogmática cujas origens claramente romperam com qualquer ideia de neutralidade. 

Reposto o problema, seria o caso de questionarmos o quanto nesses mais de 30 anos de vigência da Constituição Federal, o sistema judicial deu passagem aos verdadeiros protagonistas da cena pública, a sociedade organizada, o cidadão comum, sem amarras, freios ou tentativas de sufocamento da sua ação autônoma. 

Tais temas ainda demandam exaustivas investigações. 

Entretanto, se um olhar pelo retrovisor nos permite melhor compreender os passos que demos, o debate atual parece estar fora de foco. Pouco importará a posição do intérprete do Direito, e da Constituição Federal em particular, como ativista ou neopositivista, se o fortalecimento dos reais protagonistas não estiver no centro dos compromissos do sistema de justiça. 

Nessa linha, a construção da solidariedade exigida pelo pacto constitucional não fará sentido sem alguma imersão na conjuntura contemporânea por parte daqueles atores do mundo jurídico postos como árbitros, contentores e até, por vezes, condutores da cena pública. 

Essa compreensão prévia revela-se crucial e no inesperado embate atual, o risco de perversão reside justamente no deslocamento da realidade por parte dos contentores, ativistas ou neopositivistas, quando é a própria sociabilidade mediada pelo Direito que está sob ataque. 

Rebaixar as tensões, voltar os olhos com serenidade para rever seu papel e o quanto deu sentido ao projeto constitucional já seria um bom começo.

*1: CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.  

*2: HABERMAS, Jünger. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1, 2. ed. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 (Biblioteca Tempo Universitário, 101).  

*3: CARVALHO, Alexandre Douglas Zaidan de. Juscorporativismo: os juízes e o judiciário na Assembleia Nacional Constituinte. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 114, 2017, pp. 31-77.  

*4: Naquela ocasião uma fórmula simplificadora colocava em campos opostos, os progressistas, associados a uma ideia de justiça fundada na aplicação prática dos princípios constitucionais vazios de significado e, os conservadores, refugiados numa abordagem legalista centrada na estrita aplicação do texto da lei. < VOLTAR