15 de março de 2021 . 15:14

Aurora Coentro reflete sobre realidade das juízas do Trabalho na pandemia

A desembargadora aposentada Aurora Coentro publica, nesta segunda-feira (15), o artigo “Conversa com as Juízas – Um ponto de vista”, na coluna “Mulheres, por elas mesmas”. A magistrada se inspirou nos livros “Equador” e “Rio das Flores”, do escritor português Miguel Sousa Tavares, para falar da realidade das juízas trabalhistas no período da pandemia da Covid-19. 

O texto faz parte do projeto desenvolvido pela Diretoria de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1 para marcar o mês do Dia Internacional da Mulher, 8 de março. A cada segunda-feira do mês, um artigo de uma magistrada é divulgado no site da associação.

Conversa com as Juízas – Um ponto de vista, por Aurora Coentro *1

Hoje que não saio, vou glosar este mote. Acudo assim à necessidade de falar comigo, já que o não posso fazer com outros, é o meu mal. A índole e a vida me deram o gosto e o costume de conversar. A diplomacia me ensinou a aturar com paciência uma infinidade de sujeitos intoleráveis que este mundo nutre para os seus propósitos secretos. A aposentação me restituiu a mim mesmo; mas lá vem dia em que, não saindo de casa e cansado de ler, sou obrigado a falar, e não podendo falar só, escrevo. (Machado de Assis) *2

No mês de março, comemora-se o Dia Internacional da Mulher. E quando se poderia discorrer sobre problemas, conquistas e aspirações da mulher no curso do tempo, nos deparamos com a pandemia que, há um ano, no Brasil e no mundo, atinge mulheres, homens, jovens, idosos, pobres, negros, índios. Em nosso país, mais de 270 mil pessoas morreram, e milhões estão infectadas pela Covid-19, sem que se vislumbre no horizonte uma coordenação nacional que assegure a toda população a devida orientação e a vacinação em massa.

A conjuntura atual é das mais difíceis. Enfrentamos índices absurdos de desigualdade social, desemprego, miséria e violência. Não há planejamento do governo para as questões de ordem econômica, social e, principalmente, sanitária. Assistimos perplexos aos pronunciamentos contraditórios entre presidente e ministros e à ausência de interlocução entre governos de diferentes esferas e entre os poderes.

A desconstrução de políticas públicas e de Estado indispensáveis ao desenvolvimento, se algo evidencia, é a violação do princípio constitucional de dignidade da pessoa humana. O destaque é dado à precarização dos contratos de trabalho, com consequente enfraquecimento das entidades sindicais representativas e das negociações coletivas. E, claro, ao negacionismo em relação ao vírus e à ciência. Investimentos favorecem a indústria armamentista, em detrimento daqueles voltados para a saúde e a educação. Não são poucos os gastos com remédios ineficazes, sem contar o desmonte de políticas ambientais e de regularização fundiária. 

Tudo junto e misturado, resultando no esgotamento físico e mental não só de trabalhadores levados ao desemprego e à informalidade, mas, igualmente, de pequenos produtores, servidores públicos, médicos, professores e cientistas, entre outros profissionais. E o Poder Judiciário, cada vez mais acionado, também se ressente dessa conjuntura política errática e perversa. 

As juízas do Trabalho, que integram a organização representada neste estado pela AMATRA1, sofrem os efeitos deste momento triste, no qual têm de enfrentar o vírus e os processos. Este artigo busca lançar um olhar de longe sobre o que vem ocorrendo no mundo do trabalho e nesta Justiça, e tenta induzir as reflexões dos colegas, sobretudo os mais jovens, sobre como conciliar vida, trabalho e utopia.

Talvez por ser juíza aposentada, afastada do cotidiano de audiências, despachos, oitiva de testemunhas, contato com partes, advogados e servidores, prolação de sentenças e acórdãos, eu possa traçar um panorama mais tranquilo e analítico de nossa Justiça do Trabalho e, dentro dela, das juízas que aqui atuam. 

Escrevo inspirada por dois livros que li, há algum tempo, do escritor português Miguel Sousa Tavares: “Equador” e “Rio das Flores”. Penso que as juízas deveriam ler ambos, por tratarem de aspectos históricos envolvendo a África (no primeiro livro) e o Brasil (no segundo).

“Equador” nos revela o que representou o trabalho escravo na colônia portuguesa de S. Tomé e Príncipe. Havia forte pressão da Inglaterra, que acusava Portugal de concorrência desleal por empregar nas roças mão de obra escrava recrutada em Angola. O romance retrata o final do século XIX e início do século XX.  Embora os trabalhadores fossem nominados de “contratados”, fato é que não tinham liberdade de ir e vir, argumento utilizado para que fossem caracterizados como escravos. 

Deve ser destacado que a atuação inglesa não era motivada por sentimentos nobres de liberdade, mas sim pelo prejuízo que lhe causava a política portuguesa em relação aos “contratados”. Era evidente a redução dos lucros da companhia dedicada à produção de cacau na região, utilizando-se de trabalhadores assalariados. A trama envolve amor, traição, violência e luta pela dignidade do trabalho. *3

Em “Rio das Flores”, há o enfoque histórico e político da primeira metade do século XX, tanto em Portugal, como no Brasil. Período rico, porque nele se iniciam e findam duas guerras mundiais. E ele ainda expõe o que representou o salazarismo, em Portugal, e o Estado Novo, no Brasil. 

Na trama, o autor aborda a relação da mãe com seus dois filhos. O mais velho, revolucionário, muda-se para o Brasil, aqui enfrentando as arbitrariedades da ditadura Vargas; o mais novo, conservador, apoia Salazar e luta na Guerra Civil Espanhola contra anarquistas e comunistas. O que torna o livro interessante é o papel conciliador da mãe, preservando nos filhos os laços de amor e afeto, a despeito das posições políticas antagônicas. Ela soube lidar com as transformações em sua propriedade e na relação com a família. *4

Um observador externo pode se indagar: como nossas juízas conseguem dar conta de filhos, maridos, noivos, namorados, netos, parentes, compras em supermercados, orientação dos filhos, reuniões com professores destes, só para citar algumas tarefas, e ainda atuar nas varas, turmas ou em casa, estudando e pesquisando a situação trazida nos autos? Sem contar a coordenação do trabalho dos servidores nas secretarias de vara ou de gabinetes. 

Ora, dirão muitos, estamos esquecendo a participação masculina, não só nas mesmas tarefas jurisdicionais, como nas domésticas. É certo que a colaboração masculina hoje é bem mais expressiva. E precisamos considerar ainda a prática do “home office”, que, embora precedente à pandemia, era quantitativamente menor. 

O trabalho remoto finda por nos isolar de amigos presenciais, parentes, festas, reuniões e congressos, e ainda nos impõe o uso de máscaras que, se nos protegem, de um lado, também nos escondem. 

Não só isso, mas as audiências e sessões virtuais relativizam o “olho no olho”, essencial para tocar a sensibilidade do juiz na inquirição de testemunhas ou na sustentação dos advogados. A verdade é que o debate entre desembargadores, por exemplo, a meu ver, resta empobrecido. 

A despeito de toda essa realidade, observo, ainda que de longe, a resiliência de nossas colegas no confronto às políticas de desconstrução e precarização dos contratos, à exclusão de direitos assegurados há anos e à fragilização das entidades de classe. Percebo o esforço ante as dificuldades que decorrem do trabalho no sistema “home office”, principalmente pelas dificuldades com a internet, sempre vagarosa e mal gerida. Constato a efetiva procura e participação nos órgãos colegiados, nos cursos on-line e na Associação local e nacional. E a tudo se somam questões existenciais presentes em casa e no trabalho. 

O sentimento que me toma é o de orgulho de integrar esse grupo valente e comprometido com a composição dos conflitos e a satisfação de entregar a prestação jurisdicional. Com ele me identifico, pois, como mulher, também ultrapassei crises, como o tempo curto para dedicar à família, que cobra afeto e atenção, e ao jurisdicionado, que clama por Justiça. Essa é uma luta que aproxima homens e mulheres, facilitando o diálogo, a parceria e a troca de experiências.

Incluída no grupo de risco e seguindo à risca os protocolos de combate ao vírus, tenho maior tempo em casa e, entre livros, filmes, documentários e músicas, também reflito sobre a experiência adquirida. Fatos e pessoas desfilam, como um filme, perante um coração e uma mente mais amadurecidos. Deixo, então, para meus queridos colegas e, principalmente, para minhas colegas juízas, um simples ponto de vista, uma opinião, uma conversa. 

Ser juíza é, antes de tudo, gostar do trabalho sem descuidar da vida pessoal e familiar; sentir a responsabilidade de bem resolver um conflito de interesses, de analisar os autos, documentos e testemunhas, de recorrer a colegas e à pesquisa para dirimir dúvidas; discutir propostas inovadoras e oferecer sugestões que contribuam para acelerar o resultado do processo sem prejuízo do conteúdo a ser decidido. 

Seremos sempre cobrados, seja pela lentidão da entrega da prestação jurisdicional, seja pelas condições objetivas relacionadas às pautas/sessões e à infraestrutura das varas ou gabinetes; enfim, por toda uma engrenagem do Poder Judiciário, sempre carente de recursos e gestão eficaz. 

Fortalecer a nossa Associação é fundamental para que, juntos, possamos enfrentar as críticas, traçar planos para o melhor desenvolvimento do trabalho e condições seguras e dignas para os magistrados. Todo esse conjunto exige paciência, diálogo e busca por consensos. Além de humildade para admitir erros e aceitar críticas que colaborem com a construção de uma Justiça da qual se orgulhem aqueles que ali vêm buscar alento. Como contraponto à humildade, temos a ambição. Não aquela que legitima uma trajetória de vida, mas a que se utiliza de ardis, ilegalidades ou inveja para alçar voos condoreiros. Dessa, devemos nos afastar. 

Shakespeare, no ato segundo de sua tragédia sobre Julio Cesar, foi perfeito na metáfora colocada na voz de Bruto: ... é coisa sabida que a humildade é uma escada para a ambição incipiente, para a qual vira o rosto aquele que sobe; mas, quando chega ao mais alto degrau, vira, então, as costas para a escada, olha para as nuvens, desprezando os humildes degraus pelos quais subiu.”  Trata-se de alerta importante, tanto para as relações profissionais, quanto para as afetivas. Mas afastando os extremos: sejamos nem tão humildes que demonstremos fragilidade, nem tão ambiciosos que apenas tenhamos olhos para o poder.

Não somos um bloco único pensante. Há diferenças entre nós - políticas, filosóficas e também de interpretação da lei. A visão de mundo que temos influencia a nossa prática na solução do conflito, na postura em audiências, no contato com partes e advogados, no relacionamento com os servidores.

A firmeza de nossos princípios éticos, como nossa sensibilidade e generosidade, devem nortear a atuação virtuosa. É preciso entender os que pensam diferente, e ter habilidade para enfrentar desafios que se colocam no cotidiano do trabalho jurisdicional. 

Sabemos que, dentre os juízes, há uns que são mais céleres que outros. Uns prolatam decisões mais longas, outros são mais concisos. Uns são mais rígidos que outros. E nem por isso deixam de ser bons juízes. Aqui, não cuido daqueles que trilharam caminhos fora da lei, se corromperam ou cometeram desvios administrativos. Em outras funções, estatais ou privadas, podemos também, infelizmente, verificar desmandos. 

Deles, cuidarão a lei e a história. Constituem exceção no universo em que prevalece a crença na democracia e no Estado Democrático de Direito para consolidar, pela via institucional, o desenvolvimento sustentável, com melhores condições de vida e trabalho.

Se chegamos a mais de treze milhões de desempregados ou subempregados, trabalhadores informais, autônomos ou aqueles mascarados de pessoa jurídica, é nesta Justiça que a reclamação será ajuizada, instruída e decidida. E para que funcione com eficácia, é imprescindível o investimento na administração e gestão do Tribunal, colocando à disposição do quadro de juízes e servidores ferramentas que assegurem maior produtividade e humanização nas pautas e sessões.

Lembremos que o trabalho “home office”, aparentemente, permite maior tempo aos juízes para a elaboração de seus despachos ou decisões, sem contar as sessões virtuais nos tribunais. A realidade, contudo, pode apresentar algumas surpresas, a começar pelos problemas técnicos com a conectividade. Ademais, o trabalho em casa obriga, as mulheres (e homens também) a lidar a um só tempo com o processo e com as demandas da casa, com os deveres escolares e cobrança de atenção dos filhos.

Se não houver sensibilidade para enfrentar esse “novo normal”, a aparente liberdade maior de atuar pode se transformar em verdadeira escravidão. Transparência, planejamento, estratégia, gestão e fiscalização e, acima de tudo, diálogo são requisitos essenciais ao reconhecimento de um trabalho que assegure credibilidade no ramo do Judiciário fundamental para a democracia. 

As juízas, por sua vez, têm de enfrentar as constantes transformações no mundo do trabalho, o aumento e complexidade das lides e, na fase atual, os transtornos e dificuldades que enfrentam em casa, com a atenção à família e aos filhos e nos processos virtuais. Isso tudo sem, no entanto, perder de vista a perspectiva de buscar sempre a melhoria da prestação jurisdicional.

Para não ficar somente nos livros, lembro um filme emblemático e inesquecível. Trata-se de “Noites de Cabíria”, de Fellini. Giulietta Masina interpreta a jovem Cabíria, dançarina de cabaré que enfrentou as mazelas da vida com leveza e bom humor, e que soube preservar a crença na bondade humana e seguir adiante. O filme é de 1957. Para quem gosta de musicais, vale a pena assistir a versão “Sweet Charity”, coreografada por Bob Fosse, no ano de 2003. *5

São dois livros e dois filmes, dos muitos que li e reli, vi e revi em tantos anos de vida. Penso que as mulheres que exercem função tão relevante como a de decidir sobre direitos trabalhistas saberão deles retirar lições e rotinas que vão além do simples entretenimento. 

Essas obras informam, ajudam a pensar e a ter esperanças de que tudo pode melhorar. Com humildade e ambição na medida, para que as máscaras que hoje nos protegem não nos escondam a realidade das relações sociais, dificultadas pela conjuntura atual. E para que não acabem por tolher o desejo e a capacidade das juízas de transformá-la. 

Notas:

*1  Desembargadora aposentada do TRT-1

*2  Machado de Assis, “Memorial de Aires”, Ed. Globo, pág. 107/108

*3  Miguel Sousa Tavares, “Equador”, Ed. Nova Fronteira

*4  Miguel Sousa Tavares, “Rio das Flores”, Ed. Civilização Brasileira

*5  Federico Fellini, “Noites de Cabíria” e Bob Fosse, “Sweet Charity”

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