06 de novembro de 2019 . 13:38

Califórnia define motorista de aplicativo como empregado, diz Renda ao Jota

O juiz do Trabalho João Renda Leal Fernandes publicou o artigo “Aplicativos de transporte: ‘de repente, Califórnia’”, no portal Jota, na terça-feira (29). O magistrado afirmou que o estado norte-americano considera os motoristas de aplicativos empregados das empresas que oferecem os serviços nas plataformas digitais.

No texto, Renda citou o caso que ficou conhecido como “Dynamex”, em que a Suprema Corte da Califórnia estendeu a condição de empregados a motoristas vinculados a um aplicativo de entrega de encomendas após a aplicação do “ABC Test”, que é capaz de definir se o trabalhador é autônomo ou empregado. O magistrado também comenta a lei Assembly Bill Nº 5 (AB-5) aprovada em suas duas casas legislativas e recentemente sancionada pelo Governador da Califórnia, cujos efeitos começarão a ser produzidos em janeiro de 2020.

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“A decisão do caso Dynamex e a aprovação da AB-5, contudo, têm o efeito de estender aos motoristas de aplicativos na Califórnia (reconhecidos como “empregados”) múltiplos direitos trabalhistas assegurados pelas leis do estado”, afirmou João Renda.

Leia o artigo na íntegra:

Aplicativos de transporte: ‘de repente, Califórnia’ 

Quais direitos a Assembly Bill nº 5 estende aos motoristas de Uber e o que o debate jurídico travado nos EUA nos ensina?

Em artigo publicado no Jota na última sexta-feira, ao defender a absoluta impossibilidade quanto ao reconhecimento de relação de emprego entre motoristas de aplicativos e as respectivas plataformas digitais (como Uber, Cabify, 99), Rodrigo Dias da Fonseca afirmou que, nos EUA e Inglaterra, “decisões pontuais” acolhendo esse tipo de vínculo teriam o condão de assegurar a tais trabalhadores apenas acesso ao sistema previdenciário, porém sem qualquer efeito de ordem trabalhista.

Em seu texto, sustentou que os motoristas de aplicativos teriam ampla liberdade no exercício de seu trabalho e argumentou que, de acordo com o ordenamento jurídico pátrio, eventuais entendimentos contrários seriam frutos de raciocínios somente possíveis “mediante uma abordagem ideologizada, amparada em interpretação enviesada de princípios constitucionais de conteúdo aberto e indefinido”, “sem qualquer consideração à manifesta vontade do legislador e à legislação em vigência, e com deliberada intenção de se alcançar um resultado previamente definido”, com “artifícios hermenêuticos questionáveis”, “voluntarismo e ativismo judiciais despropositados”.

Com máximo e profundo respeito às visões externadas, em amor à dialética jurídica, permitimo-nos oferecer um contraponto e algumas breves reflexões, com base em experiências do Direito Comparado.

Embora os sistemas trabalhistas dos EUA e Brasil se encontrem estruturados sob bases consideravelmente diversas, nos EUA o reconhecimento quanto à existência de um vínculo de emprego é capaz de gerar não apenas acesso a diferentes meios de proteção social (notadamente, programas de seguro-desemprego e cobertura previdenciária), mas também múltiplos efeitos de ordem trabalhista.

Vejamos como exemplo o caso da Califórnia, estado mais populoso e com o PIB (de longe) mais elevado dos EUA, muito superior ao do Brasil. Se a Califórnia sozinha fosse um país, teria o 5º maior PIB do mundo, atrás apenas dos EUA como um todo, China, Japão e Alemanha. O estado é também berço de múltiplas empresas de tecnologia, e curiosamente o local onde foram criadas e estão sediadas as duas maiores empresas de transportes por aplicativos do mundo: Uber e Lyft. 

Foi justamente a Suprema Corte da Califórnia que, ao decidir no ano passado uma ação coletiva, confirmou a decisão de uma Corte Estadual de Apelações e estendeu a condição de “empregados” a motoristas que prestavam serviços por intermédio de um aplicativo de entrega de encomendas. Devido ao nome da empresa envolvida, o caso ficou conhecido como “Dynamex” e a decisão proferida (de forma unânime pelos 7 Juízes da mais alta Corte do estado) fez uso de um teste de três fatores que acabou ficando conhecido como “ABC Test”, cuja aplicação é capaz de definir se determinado trabalhador pode ser enquadrado como autônomo (independent contractor) ou se deve necessariamente ser enquadrado como empregado (employee) para os fins de aplicação do direito estadual. As três questões a serem superadas e respondidas são as seguintes:

(A) Está o trabalhador livre do controle e direção do tomador de serviços no que se refere ao desempenho do trabalho, tanto nos termos do contrato quanto em relação à própria realidade fática? (Numa comparação com o direito brasileiro, poderíamos dizer que essa pergunta busca aferir basicamente se existe subordinação – para nós, o principal elemento caracterizador do vínculo de emprego –, observado o princípio da primazia da realidade sobre a forma).

(B) O trabalhador presta serviços que estejam fora do escopo usual dos negócios do tomador? (Aqui, a aferição é se a natureza do trabalho prestado coincide com o escopo da atividade econômica principal exercida pelo tomador).

(C) O trabalhador está habitualmente envolvido em um comércio, ocupação ou negócio estabelecido de forma independente e cuja natureza é semelhante ao trabalho prestado para o tomador dos serviços? (Busca-se verificar se o trabalhador é, de fato, um autônomo ou microempreendedor, com um negócio efetivamente estabelecido e em cujo âmbito de atuação estaria inserida também a prestação de serviços realizada em benefício do tomador).

Os principais argumentos dos advogados de defesa, tanto no Brasil quanto nos EUA, baseiam-se nas teses de que as plataformas digitais seriam empresas de tecnologia, que conectam pessoas com interesses convergentes (não constituindo propriamente empresas de transporte) e que os motoristas teriam ampla liberdade na forma como os serviços são prestados (inexistente, portanto, qualquer tipo de direção, controle ou subordinação).

Ao aplicar o teste ao caso Dynamex, o tribunal rechaçou esses argumentos lançados pela defesa e reconheceu que a relação em análise possui todos os elementos típicos de um vínculo de emprego. Não se tratou de decisão isolada ou pontual, mas sim de acórdão unânime proferido pela Suprema Corte de um estado com quase 40 milhões de habitantes e que se destaca como o de maior protagonismo econômico em toda a federação. Deve-se recordar também que, no sistema jurídico americano, julgados emanados de cortes superiores (estaduais ou federais) são considerados fontes primárias do Direito e a própria tradição da common law já faz com que os juízes de instâncias inferiores considerem tais julgados (em casos com semelhantes substratos de fato e de direito) como precedentes vinculantes.

Meses mais tarde, o Poder Legislativo da Califórnia decidiu positivar o ABC test através de um ato normativo escrito. Para isso, editou uma lei (conhecida como Assembly Bill Nº 5 ou apenas AB-5) aprovada em suas duas casas legislativas e recentemente sancionada pelo Governador do estado. 

Embora Uber e Lyft hajam declarado que, à luz de suas próprias interpretações do ABC Test, seguirão considerando os seus motoristas na Califórnia como independent contractors (o que expõe tais empresas a riscos e promete ensejar múltiplos novos litígios), essa lei estadual foi editada com o claro objetivo de reconhecer a efetiva existência do vínculo de emprego e, consequentemente, um considerável feixe de direitos trabalhistas aos motoristas de aplicativos.

É preciso esclarecer também que, no sistema federativo norte-americano, os estados somente podem definir o conceito de “empregado” para fins da observância dos patamares mínimos de trabalho e benefícios estabelecidos em suas respectivas leis estaduais. Além disso, a decisão do caso Dynamex e a AB-5 têm seus efeitos restritos ao estado da Califórnia.

Diferentemente do Brasil (onde a União detém competência exclusiva para legislar em direito do trabalho e direito processual civil e do trabalho, conforme art. 22, I, da CRFB), nos EUA os estados da federação possuem competência legislativa residual ampla (Décima Emenda), devendo apenas observar que o teor de suas leis não pode confrontar dispositivos constitucionais ou leis federais editadas dentro da competência legislativa atribuída ao Congresso Nacional pela Constituição – art. I, Seção 8 (preemption doctrine). Desde que observadas tais restrições, os estados podem editar leis trabalhistas, bem como possuem autonomia para criar agências administrativas destinadas a dar execução a tais leis. A Califórnia, por exemplo, pode definir o conceito de “empregado” para fins de percepção de salário-mínimo-hora, jornadas máximas de trabalho, adicional de horas extras e seguro-desemprego estabelecidos pela legislação estadual.

Por outro lado, num sistema jurídico-trabalhista de viés eminentemente contratualista e que protege por lei federal (National Labor Relations Act – NLRA) o direito à sindicalização e as negociações coletivas de trabalho, a AB-5 da Califórnia não tem o condão de estender a tais empregados as proteções tradicionais à sindicalização previstas no texto do NLRA (1), uma vez que este último constitui ato normativo editado no âmbito de competência legislativa do Congresso Nacional e cujo texto contém seu próprio conceito de “empregado” (Seção 2, item 3), com a previsão de excludentes específicas (2).

A decisão do caso Dynamex e a aprovação da AB-5, contudo, têm o efeito de estender aos motoristas de aplicativos na Califórnia (reconhecidos como “empregados”) múltiplos direitos trabalhistas assegurados pelas leis do estado, dentre os quais destacamos exemplificativamente os seguintes: 

Muito mais do que a revelação de tradições jurídicas distintas, as experiências do Direito Comparado nos mostram que as diferenças de interpretações e entendimentos são absolutamente naturais à hermenêutica jurídica. Nos próprios EUA, diferente do ocorrido na Suprema Corte da Califórnia, outros tribunais administrativos e judiciais já adotaram entendimentos em sentido diametralmente oposto.

A realidade fática envolvida nesses novos métodos de trabalho é inédita, razão pela qual a maneira como cada operador do Direito a interpreta (de acordo com os tradicionais elementos de seu respectivo ordenamento jurídico) também tem naturalmente variado. As distintas conclusões adotadas, no Brasil e no mundo, demonstram inexistir obviedade na maioria das soluções jurídicas à disposição dos intérpretes, tampouco meios para simplificar demasiadamente uma realidade que se revela um tanto quanto única e complexa.

A forte polarização política no Brasil dos tempos atuais tem aparentemente produzido reflexos até mesmo no debate jurídico. Assim, em vez de o diálogo se ater a aspectos argumentativos focados na interpretação de fatos e do Direito, temos visto tentativas de se desqualificar posicionamentos contrários sob o rótulo de raciocínios somente possíveis “mediante uma abordagem ideologizada”, “enviesada”, “com deliberada intenção de se alcançar um resultado previamente definido” e com “artifícios hermenêuticos questionáveis”.

Mesmo em tempos de semelhante polarização, não se vê nada parecido no debate jurídico dos EUA, onde as vozes que discordam dos argumentos utilizados na decisão do caso Dynamex não fazem – nem de longe – uso de tal tipo de associação, rotulação ou algo parecido. Como na consagrada letra de Lulu Santos e Nelson Motta, não existe dúvida de que na Califórnia é diferente... Por sinal, bem diferente.

(1) Em princípio, uma lei estadual não pode disciplinar direitos tradicionais de sindicalização, negociação coletiva e proteção contra condutas antissindicais a trabalhadores do setor privado, já que a matéria encontra-se disciplinada por lei federal (NLRA) editada no âmbito da competência legislativa atribuída ao Congresso Nacional – art. I, Seção 8, da Constituição e NLRB v. Jones & Laughlin Steel Corp., 301 U.S. 1 (1937). Contudo, uma posição recentemente adotada pela National Labor Relations Board (agência administrativa federal que administra e executa o NLRA) ofereceu margem à possibilidade de interpretação diversa. Neste sentido, v. BLOCK, Sharon; SACKS, Benjamin. What California should do next to help Uber drivers: recognizing them as employees was a fine first step. Letting them unionize is crucial, The Washington Post, 13 set. 2019.

(2) Entre as excludentes previstas no texto do NLRA (Seção 2, item 3), encontram-se os independent contractors, tidos pela atual composição da NLRB como um conceito que abrangeria os motoristas por aplicativos. Neste sentido, veja-se a decisão do caso SuperShuttle DFW, Inc. 367 N.L.R.B. No. 75 (2019).

(3)  Informações disponíveis em https://www.classlawgroup.com/employment/california-labor-law/. Acesso em: 26 out. 2019. < VOLTAR