23 de agosto de 2022 . 12:23

Candidatos devem abordar combate ao assédio, diz Bárbara Ferrito na Piauí

“Assédio sexual contra mulheres no trabalho é mal endêmico no Brasil” é o título do artigo da juíza Bárbara Ferrito, diretora de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1, publicado na coluna desta terça-feira (23) na revista Piauí. A magistrada aborda o cenário de violências sofridas pelas trabalhadoras, a forma como a sociedade naturalizou o tratamento desrespeitoso contra as mulheres no mercado de trabalho e a necessidade de que candidatos da eleição que se aproxima abordem a pauta em suas propostas. O texto é o segundo da coluna quinzenal assinada por Bárbara, em que ela trata da relação de trabalho, raça e gênero no contexto das eleições.

Leia na íntegra:

Assédio sexual contra mulheres no trabalho é mal endêmico no Brasil

Debate eleitoral precisa discutir formas de acolher vítimas e mostrar consequências para agressores e empresas

A história do menino e o lobo narra como um menino entediado finge estar em aflição para atrair a atenção dos adultos da vila. Quando o perigo realmente bate à porta, apesar de seus gritos, os moradores já estão anestesiados: não se compadecem mais, pois acham que é outra pegadinha do menino. Na realidade brasileira, vivemos um conto piorado! Estamos todos um pouco narcotizados, não em decorrência das mentiras de um menino mimado, mas pela sucessão ininterrupta de absurdos e atrocidades a que somos expostos. Essa é uma característica da sociedade paliativa, conceito de Byung-Chul Han, que impede que processemos a dor diante da quantidade gigantesca de informações dolorosas que recebemos. Aos poucos nos tornamos insensíveis.

Para quem estuda a história do trabalho da mulher e seu ingresso no mercado de trabalho remunerado, fica claro que as mulheres sempre estiveram envolvidas nos trabalhos de cuidado. Quando elas ingressam no mercado de trabalho, não são acompanhadas na dupla jornada por seus parceiros e colegas, que seguem dedicando-se exclusivamente ao trabalho para o mercado. Isso gera um descompasso entre a disponibilidade de homens e mulheres para o labor.

Essa passagem solitária das mulheres fez com que elas fossem inseridas no mercado não como trabalhadoras, mas como mulheres. Em termos mais simples, as mulheres são encaradas no ambiente profissional da mesma forma que em um bar, em um cinema ou em um momento de privacidade. Sorrisos são confundidos com intimidade, simpatia com permissão. 

Para as mulheres, isso gera o peso da constante necessidade de se protegerem de investidas, assédios e olhares. É a ilusão de que roupas, posturas e comportamentos podem blindar uma mulher da violência e do assédio, quando a advogada Mayra Cotta já nos ensinou: o problema não está na roupa. Isso tudo ocorre tão automaticamente, de forma tão naturalizada, que muitas mulheres sequer têm ideia das violências e assédios que sofrem e das quais se protegem.

Uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão com o Instituto Locomotiva demonstra que, quando perguntadas se já sofreram assédio e violência no trabalho, apenas 36% das mulheres confirmam; mas, quando são apresentadas a situações de violência e assédio, esse número sobe para 76%.

Eis o ponto a que queria chegar: 76% das mulheres afirmam terem sofrido violências e assédios no ambiente laboral. Denúncias de assédio não são pontuais ou excepcionais. Estão na nossa própria estrutura de mercado de trabalho, pois é assim que esse mercado encara corpos femininos: como disponíveis, assediáveis, violáveis. Deixemos para os órgãos competentes discutir a autoria dos crimes, e pensemos nas respostas sociais e institucionais ao fenômeno endêmico do assédio sexual e da violência de gênero no mercado de trabalho.

No Judiciário, as coisas não são diferentes. A Pesquisa sobre Dificuldades na Carreira da Magistrada, realizada em 2019 pela Enamat (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho), revelou que, diante de uma discriminação ou agressão sofrida no exercício da função, 92,3% das magistradas não informaram o ocorrido ao Tribunal.

Quer na iniciativa privada, quer nas instituições públicas, temos barreiras para lidar com as violências e os assédios. Os números não são irrelevantes. Nas instituições privadas, 76% afirmam já ter sofrido assédio e violência e, no Judiciário trabalhista, 53,2%. O assédio e a violência são realidades para mais da metade das mulheres que trabalham, mesmo para as que seriam supostamente privilegiadas em seus cargos de poder. E ainda assim não temos uma legislação trabalhista específica sobre o tema, orientações para as empresas e instituições ou formas de acolher as vítimas.

Esse apagamento faz com que a maioria dos chefes e empregadores adote uma única tática diante de uma denúncia de assédio, que é silenciar a vítima. Ser assediada traz para a mulher uma série de novas agressões: a dor da violência sofrida, a culpa por supostamente ter dado causa, a dúvida sobre o que fazer, o medo de ser desacreditada, o julgamento público, a necessidade de reviver o trauma inúmeras vezes nos processos internos e judiciais.

Trazendo o tema para as eleições, dois pontos merecem ser abordados. Primeiro, o reconhecimento do assédio e da violência contra mulheres no mercado de trabalho como aspecto estrutural a ser corrigido por meio de políticas públicas dos diversos entes da federação e de uma legislação capaz de esclarecer as consequências do assédio e da violência, tanto para agressor e vítima quanto para empresa. Um exemplo interessante foi a iniciativa do município de Niterói/RJ de oferecer formação gratuita aos motoristas de ônibus para que saibam como reagir em situação de assédio sexual no transporte público. Uma medida simples, que mostra que sobre o tema falta vontade política e não criatividade.

Como segundo ponto, temos a Convenção 190 da OIT e a Recomendação 206, que visam eliminar a violência e o assédio no mundo do trabalho. A Convenção 190 ainda não foi ratificada pelo Brasil, apesar da relevância de seu tema. O apagamento das mulheres nas arenas de decisão e poder, tanto no Executivo quanto no Legislativo e Judiciário, faz com que esse tema perca prioridade, o que é inadmissível. Se a pauta econômica deve dominar os debates políticos, pensar em construir um mercado de trabalho livre de assédio deve fazer parte da resposta à pergunta: mas de que trabalho estamos falando?

A Convenção da OIT fala em violências, de modo que devemos pensar para além do assédio sexual. As mulheres sofrem agressões quando ganham menos, são mais cobradas, são interrompidas em suas falas ou preteridas nas promoções, quando o peso das responsabilidades de cuidado recai exclusivamente sobre elas ou quando são tidas como neuróticas e agressivas ao invés de assertivas e eloquentes como os homens. As violências são variadas e múltiplas e vão muito além das de cunho sexual.

Exigir dos candidatos a abordagem e a ratificação da Convenção 190 da OIT significa reconhecer como prioridade a qualidade de vida laboral das mulheres. Não dá mais para conviver, semana após semana, com relatos horripilantes de violências que apenas minam nossa capacidade de empatia e solidariedade com as vítimas. Enquanto isso, trabalhar se transforma em desafio à saúde mental da maioria das mulheres.

*Foto: Yan Krukov/Pexels < VOLTAR