18 de setembro de 2020 . 13:11

‘Criança não pode trabalhar de forma alguma’, diz juiz do Trabalho, em artigo

Confira na íntegra o artigo de José Roberto Dantas Oliva, advogado, juiz do Trabalho aposentado e ex-gestor nacional e regional - pelo TRT-15 (Campinas - SP) - do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho (TST-CSJT), publicado nesta quinta-feira (17), no Blog do Oliva.

O menino engraxate, o relojoeiro, o procurador do Trabalho e o presidente da República: personagens de uma tragédia da vida real

Com a caixa de engraxate sobre o ombro esquerdo, o menino, de apenas dez anos de idade, ingressa na pequena relojoaria. Olhar tímido, rostinho triste. Não podia imaginar que, ao tentar comprar um relógio para o pai (depois disseram que seria padrasto ou um tio, tido na conta de pai), na véspera do Dia dos Pais, se tornaria personagem de assunto de tamanha repercussão.

As duas pequeninas mãos sobre a haste e o apoio para sapatos que nela se sustenta denunciam: a caixa de madeira tem dimensões e peso desproporcionais para aquele corpo franzino, em desenvolvimento.

As cenas bem se ajustariam ao início do século XIX, quando, segundo se relata, teria surgido o ofício de engraxate, ao ter um general francês, em 1806, suas botas polidas por um operário, premiando-o com uma moeda de ouro. Ou à segunda metade do mesmo século (1877)(1), quando meninos, também de idade tenra, a maioria filhos de imigrantes italianos, percorriam as ruas de São Paulo, postando-se aos pés da elite da cidade grande para fazê-los brilhar.

Não. Compõem apenas o primeiro ato de uma tragédia contemporânea.

Tudo se passa em agosto de 2020, final da segunda década do século XXI. Se fosse uma peça teatral, capítulo de novela ou produção cinematográfica, o menino precisaria de autorização judicial para fazer o papel de engraxate. E seria remunerado. É vida real, porém. Inverno insólito, escaldante! Catalão, cidade do interior de Goiás, com população estimada de pouco mais de 110 mil habitantes, é o triste palco do drama dessa pobre e brasileira criança pobre.

Desprotegido, em plena pandemia de Covid-19, sem máscara ou qualquer outro tipo de prevenção, o menino oferece tudo que tem: R$ 30,00. “Estou juntando desde um tempão”, diz ao relojoeiro. É o fruto de muitos dias de trabalho pelas ruas da cidade goiana. A engraxada de hoje rende muitíssimo menos que a moeda de ouro que serviu de paga ao operário que poliu as botas do general francês há 214 anos.

As cenas daquele que poderia ser considerado o segundo ato da tragédia, envolvem o garoto e o relojoeiro, viralizaram rapidamente na Internet e foram feitas por um cinegrafista amador, não identificado.

Autorização para a exploração da imagem da criança? – Não, nem judicial nem de ninguém. Após perguntar o nome do pai do garoto e dele próprio, o relojoeiro inicia o roteiro em que se autoinseriu como um dos dois protagonistas. Erra o nome do menino, mas acerta o da relojoaria.

Vídeo publicitário? – Talvez não. É provável até que não. Não dá para supor, simplesmente, que sim, mas, objetivamente, se transformou num.

O fato é que cenas envolvendo crianças comovem. E nem é preciso ter cursado publicidade e propaganda para saber.

O que talvez muitos (excetuado o publicitário), entre os quais o relojoeiro, não saibam (embora a ignorância não os favoreça, consoante art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – DL 4.657/1942), é que a publicidade destinada ao público infantil é proibida (art. 37, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor – CDC), sendo que a Resolução 163, de 13 de março de 2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente.

Objetar-se-ia: se de publicidade se tratava, não era destinada ao público infantil. – Será que não? – Retratava um garoto, utilizando tudo que tinha, para comprar um relógio e presentear seu pai (ou quem as vezes da figura paterna fazia) no Dia dos Pais. Cenas que, vistas, influenciariam outras crianças. De qualquer modo, mesmo que se destinasse ao público adulto, para produzi-la seria necessária, igualmente, autorização judicial, inexistente no caso.

Estamos vivendo a era do exibicionismo em redes sociais e mídias eletrônicas diversas, que afeta também os mais humildes. É possível que tenha havido interesse em autopromoção, pois o relojoeiro se colocou na cena, para mostrar generosidade que, a olhos mais atentos, talvez nem seja assim tão pura. Com a repercussão havida, ele próprio e a relojoaria de Catalão, da qual é dono, ganharam visibilidade nacional. Logo, se houve, o intento exibicionista foi plenamente alcançado ou, até, suplantado. De forma intencional ou não, a relojoaria também, objetivamente, repita-se, se beneficiou do marketing.

Não se olvide, porém, que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990) assegura a preservação da imagem da criança e do adolescente como expressão do direito ao respeito que lhes deve ser assegurado (art. 17) e, ao tratar das medidas específicas de proteção e dos princípios que a regem, como o da privacidade, estatui que a promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada (art. 100, V).

Houve preservação da imagem da criança? – Não. E dela, inequivocamente, beneficiam-se, até hoje, sem autorização de quem quer que seja, o relojoeiro e sua relojoaria. Ao contracenar, diferentemente do menino, o homem usa máscara que o protege da Covid-19. No bolso da camisa, o nome da relojoaria bem visível. Volta o rosto do garoto para a câmera com a mão esquerda e diz: “Olha lá, M. (apontando para a câmera com o indicador da outra mão). Vai sair no vídeo da loja”. Não há dúvida, portanto: é um “vídeo da loja”.

Prossegue dizendo que o relógio está na promoção e que, com os R$ 30,00, a criança o compraria para o pai. Recebe o dinheiro, dizendo-se feliz (?!) pelo fato de o menino estar trabalhando e pagando pelo produto, e restitui-lhe o valor, afirmando ser um presente para comprar “alguma coisa”, “uma roupa”. E aconselha, acariciando a cabeça do garoto:

Continua trabalhando, que Deus tem um projeto na sua vida. Deus vai te fazer um grande homem. E que o trabalho dignifica. Eu sei que você é uma criança, mas não é pecado trabalhar. Criança pode trabalhar. Seja honesto e nunca se envolva com coisa errada, tá bom?

O menino não esboça um sorriso sequer, nem mesmo quando pega o dinheiro de volta. Não é para menos. Está perdendo a infância. Talvez, até, a capacidade de sorrir. O trabalho infantil amargura.

Presente? – Se alguém foi presenteado foi o relojoeiro, que, com míseros R$ 30,00, equivalentes ao preço do relógio que deixou de cobrar, conseguiu espaço midiático de proporções provavelmente não imaginadas de início.

Há sinceridade no que diz? – Sim. Na sua aparente simplicidade, àquela altura, o homem parece mesmo acreditar que o trabalho, mesmo infantil, dignifica.

Ele próprio teria sido vítima do trabalho precoce. Só concluiu o ensino fundamental quando adulto. São os mitos que habitam o imaginário popular. Assim, talvez por ter obtido algum sucesso na atividade econômica, pode se enxergar vitorioso e não ter, sequer, discernimento para compreender o quanto trabalhar desde criança pode fazer mal e fez, até, para si mesmo. Internalizou o discurso do opressor. Talvez nem mesmo tenha algum dia se sentido oprimido.

Quem sabe pecado não seja mesmo (para as vítimas, pois, para exploradores, certamente perdão divino não haverá!). Pecado é o que estamos fazendo com o futuro das nossas crianças e de nosso país, naturalizando a exploração. Ao contrário do que pensa o relojoeiro, porém, criança não pode trabalhar. Como engraxate, nas ruas, nem mesmo adolescente poderia. A modalidade é considerada uma das piores formas de trabalho infantil, sendo vedada para quem ainda não completou 18 (dezoito) anos.

Está inserida na denominada Lista TIP, anexa ao Decreto 6.481, de 2008, que regulamenta os artigos 3º, alínea “d”, e 4º da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação, que recentemente obteve ratificação universal dos países membros da OIT e que, no Brasil, foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 178, de 14 de dezembro de 1999, e promulgada pelo Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000.

O item 73 da Lista TIP proíbe trabalho em ruas e outros logradouros. Aponta como prováveis riscos ocupacionais desse tipo de trabalho: Exposição à violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas; exposição à radiação solar, chuva e frio; acidentes de trânsito; atropelamento. E as prováveis repercussões à saúde são as seguintes: Ferimentos e comprometimento do desenvolvimento afetivo; dependência química; doenças sexualmente transmissíveis; atividade sexual precoce; gravidez indesejada; queimaduras na pele; envelhecimento precoce; câncer de pele; desidratação; doenças respiratórias; hipertemia; traumatismos; ferimentos. Em tempos de Covid-19 então, tais riscos são exponencialmente agravados.

Mas não é só. Criança não pode trabalhar de forma alguma. A proibição está no art. 7º, XXXIII, da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB, na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (art. 403) e no já citado ECA (art. 60, com a leitura constitucional que dele deve ser feita). Criança merece, aí sim, da família à qual integra, da sociedade (e da comunidade) e do Estado, proteção integral e absolutamente prioritária, conforme a própria CRFB (art. 227), o ECA, a CLT e outras normas de proteção.

Assim, está errado o relojoeiro. Errados também estão todos aqueles que continuam divulgando o vídeo e fazendo apologia do trabalho infantil.

As imagens são chocantes. Deveriam escandalizar a todos. Alguns, porém, preferem romantizar a tragédia alheia, embora não enxerguem seus filhos nos papéis de exploração que admitem para os filhos dos pobres.

Em vez de brinquedos, lápis (especialmente de cor), canetas, borrachas, cadernos ou livros, há coisa mais cruel e perversa do que ver pequenas mãos empunhando uma caixa de engraxate, em plena pandemia?

O vídeo foi denunciado no YouTube. Também o Ministério Público do Trabalho (MPT) foi comunicado. O signatário deste texto está entre aqueles que, indignados, adotaram tais providências.

A partir daí, pode-se dizer que teria iniciado o terceiro ato do drama da vida real. Cumprindo estritamente seu dever funcional e papel institucional, Procurador do Trabalho da 18ª Região, depois de articulação com o sistema local de garantia de direitos e contato com o Conselho Tutelar e Promotoria da Infância e Juventude, se certificando de que a família está sendo acompanhada pela rede de proteção, recebendo benefícios, e que a criança está matriculada na escola, propôs a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ao relojoeiro, que, devidamente assistido por Advogado, o assinou.

Firmado em Luiziânia-GO, aos 3 de setembro de 2020, o TAC apenas traz a óbvia obrigação de o relojoeiro de Catalão abster-se de produzir, propagar, difundir, veicular ou encaminhar mensagens que possam constituir apologia ao trabalho infantil, violando valores constitucionais que visam preservar a integridade física, moral e psicológica de crianças e adolescentes e que, por isso, asseguram-lhes (os valores constitucionais) proteção integral e prioritária.

Poderia ter-lhe sido imposta alguma sanção imediata? – Até poderia, mas não foi. Ficará sujeito à multa de R$ 10.000,00 (Dez mil reais) apenas se descumprir o compromisso assumido, cada vez que o fizer. É o mínimo!

Isto não impediu, no entanto, que admiradores do trabalho infantil (pasme-se! – Eles existem, por ignorância ou por serem opressores mesmo, tanto os natos em classes mais abastadas como os que se consideram emergentes), que aplaudiram a iniciativa do relojoeiro, voltassem sua ira e destilassem ódio contra o Procurador do Trabalho, que apenas exerceu seu mister.

Não faltaram sites pretensamente jornalísticos para tentar desqualificar o Procurador. Insultos à sua honorabilidade foram proferidos, como se estivéssemos em terra de ninguém, e não sob os auspícios de um Estado democrático de direito. Achincalhes em redes sociais passaram a ter a Procuradoria Regional do Trabalho de Goiás e, mais especificamente, o Procurador que oficia em Luiziânia, como alvo.

Nesse ínterim, houve até repórter que se permitiu ilustrar a matéria com o menino de dez anos engraxando seus sapatos. E fez também, assim, perniciosa apologia ao (e do) trabalho infantil.

Os ataques ao Procurador, que merece, no caso, irrestrita solidariedade, ganharam proporções tão assustadoras, que o Ministério Público do Trabalho (PRT 18), se viu na inusitada contingência de ter que divulgar nota explicativa, esclarecendo que “(…) o comerciante foi tratado de forma muito respeitosa” (e nem se esperava outra coisa do MPT) e que “Não foi punido, nem condenado nem multado” (Aí poderia ter sido diferente, mas agiu bem o Procurador, com comedimento em razão da simplicidade da parte envolvida, ela própria aprisionada na triste herança do trabalho infantil).

A Nota acrescenta que o relojoeiro é “(…) pessoa simples, com história de muitas dificuldades e trabalho desde muito cedo. Há inclusive o histórico de uma doença crônica muito grave que pode ter resultado da exposição a situações de risco vivenciada por ele no trabalho precoce”.

É da referida Nota também que se extrai ter o relojoeiro concluído o ensino fundamental apenas quando já era adulto e que “(…) se preocupa com a educação dos filhos (…)” (que bom!), tendo reconhecido – e revelado já ter então consciência – de que “(…) sua própria vida teria sido menos difícil se tivesse tido a oportunidade de estudar quando era criança”. Consta, ainda, que o comerciante “autorizou a divulgação do depoimento e da própria história dele como exemplo dos danos causados pelo Trabalho Infantil”.

Mais do que se explicar, o Ministério Público do Trabalho precisa continuar altivo, cônscio das elevadas atribuições que tem, revelando-se implacável no combate a atos e ações que ofendam a dignidade humana, coibindo os exploradores do trabalho infantil e agindo contra quem o estimula e apoia também. Assim, não pode encolher-se, mas, ao revés, ampliar sua atuação no episódio, alcançando a todos os que ainda insistem na glamourização da mazela, fortalecendo o Procurador atuante e a instituição em si.

Antes mesmo de encerrado o terceiro ato, porém, repentinamente surge personagem que atua no sentido diametralmente oposto ao papel que deveria desempenhar. Contrariando o compromisso solene (juramento, na verdade, nos termos do art. 78 da CRFB) prestado ao tomar posse de, dentre outras coisas, manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis do país e promover o bem geral do povo brasileiro, em vez de defender infância sadia e educação, o presidente da República referendou e fez apologia ao trabalho infantil e, na onda, apedrejou também o MPT.

Inversão completa de valores.

Depois de fazer piada de sentido ambíguo e conotação sexual – que só ele achou engraçada – com uma criança também de dez anos (com essa idade, não é jovem não, presidente!) que se autodeclara repórter desde os seis e disse que seus pais trabalham desde os 13, Jair Bolsonaro aproveitou o gancho da menina, que permaneceu durante todo o tempo ao seu lado e de outras pessoas (todas sem máscara), e quase no final da sua live de quinta-feira, 10 de setembro último, começou dizendo que “viu” uma “história aí”, que não havia apurado se era verdadeira, “mas tá muito na Internet” (suas ações são pautadas por ela). E fez o seguinte relato:

Um garoto, deve ter uns dez anos de idade ou nove, com uma caixinha de engraxate nas costas, sapato – eu já engraxei sapato lá em Eldorado Paulista, a caixa era feita de caixas de maçãs argentinas, manzanas argentinas – e ele foi no relojoeiro pra comprar por R$ 30,00 um presente pro pai, o relojoeiro deu o relógio pra ele, devolveu o dinheiro pra ele e daí parece que um, um, alguém do Ministério Público do Trabalho, notificou o dono da relojoaria, dizendo que estava fazendo apologia ao trabalho. A que ponto nós chegamos, né? (ar de riso) Apologia ao trabalho. Deixa o moleque trabalhar, poxa. Eu trabalhei, eu falei que aprendi a dirigir com 12 anos de idade – não foi que o cara foi na, na, na estrada me ensinar dirigir não, o trator não, eu arava, eu gradeava, junto com Seo Alcides, já botei no faceboock aí ó, esse videozinho – deixa a mole… a molecada quer trabalhar, trabalha. Hoje, se o moleque tá lá na cracolândia eu acho que ninguém faz nada com o moleque, ninguém faz nada. Mas teve uma candidata gravando na cracolândia essa semana, não é verdade? Ha, ha, ha, ha, ha, ha (…).

As versões do presidente sobre ter sido um trabalhador infantil já sofreram variações. Caso alguma delas se confirme, talvez isso explique por que, conforme ele próprio admite (ao ter dúvidas sobre se o correto seria aderiu ou adiriu) na live, tenha até mesmo dificuldades com o vernáculo, pedindo desculpas por “de vez em quando ser pego no português aqui”.

Muito piores do que os deslizes lexicográficos – e destes ninguém está inteiramente livre – de Sua Excelência, porém, são o desapreço que demonstra pela Constituição da República que jurou cumprir e defender e o estímulo ao descumprimento das leis e ao desrespeito pelas autoridades constituídas, como o “alguém do Ministério Público do Trabalho” a que se referiu de forma jocosa e imprópria, emprestando força aos detratores de quem, no legítimo exercício das atribuições do cargo, cumpriu seu dever.

Partindo da mais alta autoridade da República, a afirmação de que se deve deixar a “molecada” trabalhar soa como passe livre para a violação de direitos humanos fundamentais de crianças e adolescentes. É o presidente autorizando a afronta à Constituição, à CLT, ao ECA, a outras leis de proteção, mas não só.

Representa clara sinalização de que o País, ou, se não, pelo menos a autoridade eleita para representá-lo, não encara(m) com seriedade as Convenções (como a 138, da idade mínima, ou a 182, das piores formas de trabalho infantil, da OIT) que ratifica(m) e que, por isso, também integram seu ordenamento jurídico interno, e os compromissos internacionais assumidos.

O Brasil já descumpriu pactos anteriores, mas, como o resto do mundo, é signatário da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), que dentre os 17 (dezessete) Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) tem, no 8º (oitavo), o trabalho decente associado ao crescimento econômico como propósito global. E uma das metas do ODS em questão é a 8.7, que prega a eliminação imediata das piores formas (como a de engraxates nas ruas) de trabalho infantil e de todas as formas dessa chaga social até 2025.

E quem disse que a União e, por extensão, o presidente da República, não tem responsabilidade ou obrigação com meninos e meninas da cracolândia ou com quem está “fumando” um “paralelepípedo de crack”, como também já falou, no passado, Sua Excelência, ao referir-se a crianças (entre as quais se incluiu) trabalhadoras? – Faça alguma coisa. Crack e cracolândia não! – Trabalho infantil também não. Nem uma coisa, nem outra, presidente. Basta assegurar o que já está no papel (Constituição e leis) e impedir qualquer das duas sinas.

É passada a hora, portanto, de parar de brincar com coisa séria, em lives ou não. Inadmissível, aliás, que o chefe da Nação continue agindo impunemente, em afronta ao que jurou cumprir, defender e observar. Urge que o sistema de freios e contrapesos (a clássica fórmula dos checks and balances, que consiste, na essência, na ideia do controle do poder pelo poder) comece efetivamente a funcionar. O papel de mero espectador não é mais aceitável.

Curioso – irracional até, inclusive no aspecto econômico – que se defenda trabalho para crianças em país que tem milhões de adultos desempregados. Daqui a pouco, estaremos sendo acusados, também, de dumping social, em razão de salvo conduto presidencial para utilização de trabalho infantil – combatido no mundo todo – para baratear custos. Já não bastam os efeitos econômicos das queimadas na Amazônia? – Queremos também esta pecha?

É preciso assegurar, isto sim, infância lúdica, protegida e feliz.

Que se cumpra a Constituição também no aspecto da educação, que como dever do Estado, é obrigatória dos quatro aos dezessete anos e deve ser universalizada, gratuita, de qualidade, integral (completa) e em tempo integral, atrativa, que prepare para a cidadania e para o mundo do trabalho, conforme também preconiza a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Ah, mas a realidade é outra! – Cabe-nos, especialmente ao presidente da República, ao governador, ao prefeito, transformar a realidade malévola.

Que sejam criados, até, programa(s) de renda mínima para que adolescentes oriundos de famílias carentes possam frequentar a escola e não tenham que trabalhar (e, muito menos, sejam aprisionados na cracolândia). Que se premie frequência, se assegure alimentação e laureie-se o mérito. Se as armas (no sentido figurado positivo, é bom que se esclareça!) forem as mesmas, não haverá mal no estímulo à busca da excelência e da revelação de talentos.

No Brasil e no mundo do Século XXI, não há mais espaço para criança trabalhar. Precisamos transformar o círculo vicioso no qual a pobreza é causa e consequência do trabalho infantil num círculo virtuoso, em que crianças pobres e ricas tenham garantido o direito ao não trabalho, educação e oportunidades iguais. Sonho? – Se sonharmos juntos, será factível.

Maior até do que o singular infortúnio do menino engraxate, que por culpa de todos nós – família (esta, aparentemente, também vítima), comunidade, sociedade e Estado – que deveríamos protegê-lo está engraxando em plena pandemia pelas ruas de Catalão-GO, será a tragédia desta Nação e de suas crianças se este insano estímulo ao trabalho infantil não for imediata e definitivamente abortado. Basta! Chega de sandices.

É hora de consciência: em mundo globalizado, assegurar infância venturosa para crianças, valorizar a educação e preparar adolescentes e jovens para a cidadania e emprego plenos e produtivos, não é apenas questão social, mas econômica também. Única saída para que a Nação inteira não se veja despreparada, marginalizada e excluída, num futuro que já é hoje e para o qual já estamos atrasados. Que este quarto ato encerre tudo que de trágico vem ocorrendo com as crianças e adolescentes brasileiros.

Respeito à Constituição! Respeito às crianças! Respeito ao ECA! Respeito à CLT! Respeito às Convenções ratificadas e compromissos internacionais assumidos! Respeito à LDB! Respeito a toda legislação de proteção, que é boa e só precisa ser cumprida, especialmente por quem tem o dever maior de fazê-lo! Respeito ao povo brasileiro! É o que se pede. É o que se exige!

Não há mais como transigir.

(*) Advogado, Juiz do Trabalho aposentado, ex-gestor nacional (e regional – TRT 15) do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho (TST-CSJT), mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professor universitário, jornalista e radialista.

(1) Referências históricas disponíveis em https://www.portalsaofrancisco.com.br/calendario-comemorativo/dia-do-engraxate. Acesso em 16.09.2020.

*Foto: Tina Floersch / Unsplash. < VOLTAR