16 de maio de 2022 . 14:34

Cultura escravocrata ainda é presente nas relações de trabalho, diz Valdete Severo

A persistente cultura escravocrata que permeia, inconscientemente, as relações formais de trabalho no Brasil – último país da América Latina a oficializar, em 13 de maio de 1888, o fim do sistema de exploração, depois de quase quatro séculos – foi o foco da live “Dia do Trabalhador, Significado do Emprego e a Perda dele nos Dias Atuais”, promovida pela AMATRA1 na sexta-feira (13). A juíza Daniela Muller, diretora da associação, debateu com a pós-doutora em Ciências Políticas Valdete Severo, levantando a relevância da data, assim como seus pontos críticos, e as consequências dessa negativa herança para os trabalhadores. A conversa foi transmitida pelo canal da AMATRA1 no YouTube e no Facebook.

Daniela introduziu o tema lembrando que o ensino mais clássico menciona que, apenas a partir da assinatura da Lei Áurea, foram iniciadas as condições sociais, legais e históricas do que é visto hoje como Direito do Trabalho. No entanto, pontuou a juíza, existia uma sociedade de Direito com separação de poderes, inclusive com a atuação de um Judiciário que apreciou processos relativos à escravidão, como a chamada “ação de liberdade”.

Juiza Daniela Muller lembrou ações que eram julgadas pelo Judiciário antes da abolição da escravatura

“Podemos pensar em uma proximidade com nossa ação indireta, só que talvez uma das mais importantes, porque valia a liberdade e reconhecia aquela pessoa enquanto ser humano e cidadão que, a partir dali, teria alguns direitos”, explicou.

Rejeitando a concepção popularmente difundida de que algumas pessoas detentoras de poder se imbuíram de ideias liberais e entenderam que o sistema escravagista não era o melhor, a magistrada vê a conquista da abolição como fruto da luta de pessoas escravizadas e, também, de integrantes da classe trabalhadora do período. 

“Isso gerou uma grande massa de libertos e livres que trabalhavam, no século 19, por demanda, de uma forma incomodamente parecida com o que vemos hoje com os trabalhadores de aplicativos: sem vínculos ou qualquer tipo de proteção”, disse, ressaltando que o conceito do 13 de maio só fica completo quando unido ao do Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro. 

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Valdete Severo concorda que a Lei Áurea, simbolicamente, foi muito importante, “mas deixou muito a desejar”. A falta de um “acerto de contas” fez persistir, segundo a especialista, “uma subjetividade que nos faz pensar que ainda somos senhores de escravos”. Com isso, a lógica em que “o outro é visto como alguém que deve me servir” é presente em muitos vínculos sociais, mas especialmente nas relações de trabalho. 

Ela indicou que, como o trabalho é obrigatório e não uma escolha, quem não trabalha, como regra, não sobrevive, e isso faz com que o cidadão perca sua condição de subsistência mais elementar. Assim, o trabalho passa a ser visto sob a perspectiva da gratidão, “como se ter um trabalho fosse algo que dependesse da boa vontade de quem está empregando”.

“Atua no inconsciente a presença da cultura escravocrata que faz com que a gente olhe para uma relação de trabalho e entenda que quem está trabalhando deve ser grato por ter um trabalho, e que, como está à disposição de quem o emprega, quem emprega pode descartá-lo à hora que quiser”, acrescentou.

Autora do livro “A Perda do Emprego no Brasil: Notas para uma Teoria Crítica e para uma Prática Transformadora”, Valdete falou também sobre a ideia da inconstitucionalidade da justa causa, afirmando ser praticada sem observar a ampla defesa e o contraditório. Para a pesquisadora, não deveria ser permitido que um Estado fundado na dignidade humana e no valor social do trabalho tenha a possibilidade de “tirar o emprego de alguém sem pagar nada, que é o que costuma acontecer, sob a alegação de uma acusação que torna inviável o vínculo, e sem que essa pessoa tenha o direito de defesa”.

Especialistas debateram sobre questões do mundo do trabalho, na sexta (13)

Sei que isso é polêmico, sempre surge o argumento da possibilidade de a pessoa ter furtado, agredido o empregador, se negado a trabalhar… Pode-se imaginar as situações mais revoltantes. O meu ponto é que, então, não se continue o vínculo, pois é uma hipótese de despedida motivada, mas que se pague aos trabalhadores direitos que não tem a ver com sua boa ou má conduta e que são condições de possibilidade de sobrevivência”, completou.

Valdete considera como “boicote à ordem constitucional” a justa causa sem pagamento de direitos ou com redução dos valores de direito do trabalhador – fato que altera não só a esfera trabalhista, mas também econômica. “Toda vez que aceitamos que alguém demita sem pagar nada e sem dar acesso ao fundo de garantia do próprio trabalhador e ao sistema do seguro desemprego, estamos prejudicando todo o tecido social pois colocamos essa pessoa e essa família em situação de indigência, já que a maioria das pessoas ganha para comer.”

Veja a live na íntegra:
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