25 de agosto de 2020 . 13:18

Em artigo, Périssé aborda efeito da pandemia no novo Direito do Trabalho

Confira na íntegra o artigo do juiz do Trabalho e professor Paulo Guilherme Santos Périssé, ex-presidente da AMATRA1, publicado nesta terça-feira (25), na Revista Direito, Estado e Sociedade, do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio.

Como a pandemia impactou o novo Direito do Trabalho

Desde 2017, quando entrou em vigor a chamada reforma trabalhista, assistimos à intensificação da reforma da estrutura jurídica que organiza as relações de trabalho no Brasil.

O que vem sendo denominado novo direito do trabalho pode ser sintetizado juridicamente por uma série de mudanças legais que transformam e colocam em contradição os elementos fundantes do próprio campo jurídico laboral (1).

Um dos seus vértices consiste na propagada tese de que a legislação trabalhista herdada da Era Vargas é disfuncional e privilegia o grupo dos trabalhadores formais, sonegando direitos e oportunidades àquela enorme massa de excluídos do seu manto protetivo (2).

Argumenta-se que para enfrentar essa dualidade no mercado de trabalho é indispensável retirar as amarras legais (direitos) que dificultam a expansão do nível de emprego no Brasil (LUK-TAI YEUNG, 2007).

Sob o ponto de vista normativo, a fórmula traduz-se com a desregulamentação e o rebaixamento dos direitos daqueles trabalhadores já integrados, os chamados formais, na expectativa de que novos postos, com menos direitos, possam absorver os chamados informais (3).

Percebe-se assim a razão pela qual nesse novo arranjo a lei, registro tradicional das conquistas dos trabalhadores, precisa ser suplantada preferencialmente por meio da negociação direta entre patrões e empregados. À normatização estatal será privilegiada a liberdade e a autonomia da vontade dos contratantes.

Essa tendência coloca em cheque a estrutura normativa do direito do trabalho vigente, dentro da qual é pressuposta a assimetria entre empregadores e empregados, justamente porque o dogma da autonomia da vontade não prevalece diante da realidade socioeconômica subjacente ao contrato.

Portanto, mais do que uma simples transformação legal, está em disputa a reformulação dos próprios postulados que orientam toda a estrutura normativa, agora direcionada para permitir a expansão do emprego de baixa qualidade (4).

No entanto, é do cenário da pandemia que emerge a realidade socioeconômica capaz de subverter a fórmula do novo direito do trabalho e expor as limitações desse projeto de mudanças, como exploro a seguir.

A realidade socioeconômica se impõe

Fundamentado no princípio geral da autonomia da vontade, o novo direito do trabalho rejeita toda forma de organização coletiva dos trabalhadores e privilegia a negociação direta como a forma eficiente para atender aos interesses das partes e solucionar os eventuais conflitos nessa relação jurídica.

Por exemplo, ao regulamentar o teletrabalho (5) foi autorizada a alteração contratual independente da vontade do empregado e sem cogitar a possibilidade de prejuízo ao trabalhador, conforme o princípio geral que veda a alteração contratual lesiva (6).

Isso reforça a ideia de que o novo está assentado no vetusto rebaixamento das condições de existência dos trabalhadores (7), propondo maior incorporação ao mercado do trabalho à custa da redução de direitos daqueles já integrados.

Entretanto, entre o mundo normativo ideal e a realidade já há claros sinais de problemas nessa formulação.

De fato, o período posterior à reforma trabalhista aponta que a alteração legal não impactou significativamente a crescente degradação do mercado de trabalho. De um modo geral foram preservadas as tendências anteriores relacionadas à desocupação, à ampliação da informalidade e às formas precarizadas de trabalho (8).

Nesse sentido, por exemplo, a Carta de Conjuntura IPEA 43 (LAMEIRAS et al., 2019) apontou que a adoção da modalidade de trabalho intermitente por parte dos empregadores teria implicado, não apenas na redução dos direitos desse grupo de trabalhadores, mas impactado negativamente seu rendimento médio. Por outro lado, o esperado aumento do nível de emprego com a formalização de novos contratos de trabalho não se confirmava até então.

Vale lembrar que o trabalho intermitente representa uma modalidade de ajuste dentro da qual o trabalhador fará jus a um leque de direitos inferior àquele conferido aos demais, tendo sido veiculado como a melhor alternativa para a criação de novos postos de trabalho (9).

Não bastasse isso, os limitados resultados positivos nos níveis de ocupação ocorreram à custa da ampliação do trabalho informal, justamente no sentido oposto daquele imaginado com a reforma (10).

Entretanto, foram os inesperados acontecimentos do estado de calamidade pública decretada em função da pandemia da Covid-19 que revelaram as limitações normativas desse novo direito.

Isso porque, de modo paradoxal, ao descortinar o mundo real, o contexto de crise impôs o enfrentamento conjunto dos nossos temas recorrentes: desigualdade, pobreza e trabalho. A adoção de políticas emergenciais como condutoras desse processo demarcam um novo universo de possibilidades.

Nesse ponto, a estratégia de rebaixamento dos direitos deu lugar ao protagonismo do Estado e, ainda que de forma vacilante, foi editada uma legislação de emergência que procurava reduzir o potencial disruptivo da crise socioeconômica que emergia.

É justamente essa intervenção do Estado nas relações de mercado que revela a fragilidade do novo direito e da sua fórmula baseada no predomínio da autonomia da vontade.

Diante da iminência de danos profundos nos níveis de emprego e na renda dos trabalhadores, com o fechamento de postos de trabalho e demissões em massa, os defensores dos dogmas da liberdade contratual não titubearam e postularam a intervenção do Estado nas relações de trabalho.

Por sinal, consequências não intencionais dessa ação revelam resultados jamais esperados (11), como a redução drástica do padrão de desigualdade, o aumento da renda naqueles domicílios da população mais vulnerável e o aumento da renda média do trabalho nesse curto período, sob o impulso das políticas de preservação de emprego e renda e do auxílio emergencial (CARVALHO, 2020).

O futuro ainda está por ser desbravado, mas no atual contexto, o novo direito do trabalho e sua decantada tese da liberdade contratual no campo das relações laborais mostra suas deficiências e expõe a fragilidade dessa estrutura normativa de modo cabal.

Notas

(1) Sob o prisma jurídico, o direito do trabalho se justifica porque a relação contratual sobre a qual foi construído envolve uma relação assimétrica entre empregadores e trabalhadores, razão por que o princípio geral clássico da autonomia da vontade não faria sentido.

(2) Um dos mantras dessa nova formulação é constantemente repetido como crítica geral: no Brasil há muitos direitos e pouco emprego e os trabalhadores devem escolher entre um ou outro. Por exemplo: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-diz-que-programa-de-emprego-tera-foco-em-pessoas-de-ate-29-e-acima-de-55-anos,70003062981. Acesso:21/08/2020.

(3) Para a teoria jurídica, formais são aqueles contratados com a anotação da carteira de trabalho e informais aqueles que laboram sem anotação da CTPS.

(4) Como já experimenta o setor industrial. Disponível em: https://iedi.org.br/artigos/imprensa/2020/iedi_na_imprensa_20200203_emprego_industrial_cresce_mas_com_baixa_qualidade.html. Acesso: 22/08/2020.

(5) Art. 75 A-E da CLT.

(6) Art. 468 CLT — Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

(7) Esse seria o sentido concreto da tendência de desregulamentação, precarização e prevalência da autonomia da vontade.

(8) Como revelado pela imprensa especializada. Por exemplo: https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2019/09/25/em-quase-2-anos-de-reforma-trabalhista-15percent-vagas-criadas-no-pais-sao-para-intermitentes.ghtml.Acesso 22/08/2020.

(9) Um resumo do cenário pós-reforma pode ser observado em: https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/trabalho-intermitente-reforma-trabalhista-/#cover. Acesso 23/08/2020.

(10) Por exemplo: https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/reforma-trabalhista-completa-dois-anos-/#cover. Acesso 23/08/2020.

(11) Ressalte-se que esses indicadores ainda dependem de análises mais estruturadas. Uma abordagem preliminar pode ser observada Carta de Conjuntura IPEA nº 48/2020 (CARAVALHO, 2020).

Referências

CARVALHO, Sandro S. de. IPEA. Os efeitos da pandemia sobre os rendi- mentos do trabalho e o impacto do auxílio emergencial: os resultados dos microdados da PNAD Covid-19 de junho. Carta de Conjuntura, IPEA, Rio de Janeiro, n. 48, seção Mercado de Trabalho, 3º tri. 2020 (Carta de Conjuntura, 48). Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/200724_cc48_mt_final.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2020.

LAMEIRAS, Maria A. P.; CORSEUIL, Carlos H. L.; RAMOS, Lauro R. A.; CARVALHO, Sandro S. de. Mercado de Trabalho. Carta de Conjuntura, IPEA, Rio de Janeiro, n. 43, seção VIII, 2º tri. 2019. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/190618_cc_43_mercado_de_trabalho.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2020.

LUK-TAI YEUNG, Luciana. Análise Econômica do Trabalho e da Reforma Trabalhista (Lei nº13467/2017) — Um dossiê sobre a análise econômica do direito. Revista de Estudos Institucionais, v. 3, n. 2, 2017. Disponível em <https://estudosinstitucionais.emnuvens.com.br/REI/article/view/227>. Acesso em: 21 ago. 2020.

*Foto: Flickr/TRT-1 < VOLTAR