28 de janeiro de 2021 . 12:00

‘Escravidão é indefensável’, dizem Carina Bicalho e Bárbara Ferrito, em artigo

No Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, lembrado nesta quinta-feira (28), a desembargadora Carina Bicalho e a juíza Bárbara Ferrito, diretoras de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1, fazem uma reflexão sobre o tema. O artigo “Combate ao trabalho escravo: um dia para lembrar todos os dias da luta” destaca ainda haver, no Brasil do século 21, a exploração de trabalhadores nos campos e nos centros urbanos. Para Carina e Bárbara, o debate é fundamental para o efetivo combate à prática.

Leia o artigo na íntegra:

Combate ao trabalho escravo: um dia para lembrar todos os dias da luta

Por Bárbara Ferrito e Carina Bicalho

Esquecimento. A vida é feita de esquecimentos, apagamentos e silêncios. Talvez por isso tenhamos uma necessidade de guardar memórias, fotografias e vídeos, as redes sociais fervilham de #TBT´s. É o medo de esquecer. Porque, isso seria negar os bons momentos, os gestos de generosidade, de carinho e amor. Esse exercício, no entanto, não vale apenas para os momentos gloriosos. Tempos duros de nossa vida e de nossa história também merecem os holofotes da recordação, para que saibamos o que nos constitui como sociedade, como seres humanos.

É por isso, talvez, que tenhamos essa necessidade de marcarmos datas. Para lembrar. Quer para nos recordarmos das glórias de sermos, mas também da dor que podemos causar. É por isso que voltamos, todos os anos, insistentemente, para esse dia 28 de Janeiro, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. 

A data veio em razão do assassinato de três auditores fiscais do trabalho, Nelson José da Silva, João Batista Lage e Eratóstenes de Almeida Gonçalves, e do motorista Ailton Pereira de Oliveira, que fiscalizavam denúncias de trabalho escravo em uma fazenda em Minas Gerais, em 2004. 

É preciso lembrar que ainda há trabalho escravo no Brasil tecnológico do século XXI. É preciso lembrar que o sistema integrado de proteção ao trabalho está sob constante ameaça. É preciso lembrar os nomes, para humanizar vítimas, esvaziadas pelo trabalho escravo ou seu combate.

Mas o que falar sobre combate escravo que já não foi dito? A escravidão é indefensável, disso sabemos. A despeito de muitos defenderem condições de trabalho altamente precarizadas, com redução drástica dos direitos trabalhistas, o termo “escravidão” afasta o mais fiel defensor da precarização. No que pese essa unanimidade, casos de trabalho escravo contemporâneo seguem sendo descobertos e chocando o Brasil. Entre 1995 e 2018, mais de 53 mil trabalhadores foram resgatados do trabalho escravo no Brasil. 

O primeiro caso de condenação do Brasil por trabalho escravo na Corte Interamericana de Direitos Humanos foi chamado de Caso Fazenda Brasil Verde, no Pará. Lá, o trabalho escravo era rural, e o perfil dos escravizados era de homens, negros, sem instrução, vindos do nordeste ou norte, atuando em atividades braçais no campo. 

Analisando dados de 2003 a 2018 de 45.028 trabalhadores resgatados, o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas indica que 73% das vítimas era trabalhador agropecuário, 3% trabalhador da pecuária, 3% serventes de obra, 2% pedreiro, 2% trabalhador na cultura da cana de açúcar e 2% trabalhador volante da agricultura. Quanto a raça, 42% se declara parda, mulata, cabloca, cafusa ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça, 23% branca, 18% amarela, 12% preta e 4% indígena. 

A característica da escravidão persistente no Brasil no meio rural e fazendo vítimas preponderantemente pretas e pardas não nos permite dizer que os centros urbanos desconheçam essa realidade amarga. Além da escravidão urbana já identificada no setor têxtil, na construção de rodovias e ferrovias, construção de instalações esportivas, boates e danceterias, crescem os casos de outro tipo, mais silenciosa e menos visibilizada o trabalho escravo doméstico. E a subnotificação de casos de trabalho escravo doméstico é uma realidade que precisa ser considerada. 

O reconhecimento de trabalhadores domésticos em regime de escravidão não é algo novo. Em 26 de Julho de 2005, a Corte Europeia de Direitos Humanos julgou o caso Siliadin v. France, no qual se debruçou sobre a caracterização do trabalho em condição de escravidão, servidão, compulsório e forçado, bem como as respostas apresentadas pelo Estado para tais condutas. No processo, uma jovem togolesa de 15 anos fora encaminhada, por agenciamento de um parente de seu pai, para a França, a fim de estudar, com visto apropriado a este intento. Ali chegando, viu seu passaporte retido, tendo sido obrigada a trabalhar mais de 12h por dia, 7 dias por semana, sendo-lhe informado que sua situação seria regularizada tão logo fosse quitada a dívida assumida com o custo da passagem aérea. Após alguns meses, a jovem foi “emprestada” a outra família, para qual prestou serviços domésticos, por mais de 12h por dia, 7 dias da semana. Após conseguir escapar, a jovem retornou ao cativeiro, por influência de familiares em sua terra natal, nas condições já mencionadas.

O trabalho escravo doméstico é um crime praticado às escondidas, no âmbito do domicílio constitucionalmente protegido e buscando justificativa moral na caridade. É preciso lembrar que, no entanto, apenas perpetua a figura da “escrava de dentro”, responsável pelos cuidados com a casa, com os proprietários de escravos e seus familiares. Reafirma a estrutura escravocrata que está na base de nossa sociedade e precisa ser enfrentada. 

Aqui, não há a figura do feitor, que povoava nossos desenhos dos trabalhos de história da infância, com seu chicote na mão e sua cara brava. As amarras agora são psicológicas: as dívidas de “caridade”, a ética do provedor e a fome aprisionam. Não há, ainda, a personagem do fazendeiro ganancioso e inescrupuloso, que se faz de cego diante do aumento dos lucros, sem praticamente qualquer custo de mão de obra. Substitui-se pela família “caridosa” que “adota” uma pessoa humilde, a qual se torna responsável pelos cuidados da casa… e sem praticamente qualquer custo de mão de obra.

Em julho de 2017, uma empregada doméstica de 68 anos foi resgatada do trabalho em condições análogas às de trabalho escravo na cidade de Rubim, no Vale do Jequitinhonha. Além de nada receber pelos serviços prestados, a empregadora se apropriava do benefício de pensão por morte deixado pelo marido da empregada.

Conhecer os números e as histórias de brasileiros escravizados é importante para mantermos essa capacidade de nos impressionarmos com os absurdos, mas é impossível não perceber que isso não é mais suficiente. 

No próximo dia 04 de fevereiro, para lembrar o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, a Amatra 1 convida para um Bate Papo sobre “Vivências no Combate ao Trabalho Escravo e resgates no Brasil”. A colega Luciana Vanoni conversa com o Auditor Fiscal do Trabalho Alexandre Lyra, com a Procuradora do Trabalho Guadalupe Turos e com o Juiz do Trabalho Jonatas Andrade sobre suas vivências em Operações de Combate ao Trabalho Escravo e na Vara Itinerante no Pará.

Debater o assunto, conhecer a realidade a partir de múltiplas perspectivas faz parte das medidas fundamentais para enfrentar o trabalho escravo de qualquer tipo.

Foto: Renato Alves/MTE < VOLTAR