18 de maio de 2022 . 12:13

Uberização do trabalho é tema de artigo do juiz Ronaldo Callado, no Jota

O presidente da AMATRA1, Ronaldo da Silva Callado, publicou o artigo “O fenômeno da uberização nas relações trabalhistas” no Jota, nesta quarta-feira (18). O magistrado analisa o cenário jurídico que envolve a ligação entre trabalhadores e empresas de aplicativos digitais. Callado defende que a relação de emprego desse fenômeno tem como uma de suas bases a subordinação algorítmica por aparatos tecnológicos – em que “as ordens e imposições são apenas ‘sugeridas’ e numa faceta mais amena” –, com previsão no parágrafo único do art. 6º da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

Leia o artigo na íntegra:

O fenômeno da uberização nas relações trabalhistas

Discussão sobre vínculo empregatício envolvendo motoristas de aplicativos chegou ao TST em seis ações

O fenômeno da uberização do trabalho tem levantado um intenso debate na Justiça sobre o avanço tecnológico em contraposição à legislação trabalhista. O ponto central da discussão é a caracterização (ou não) da relação jurídica de emprego, com especial destaque para a subordinação jurídica, observando-se o cenário jurisprudencial brasileiro e internacional.

Há várias perguntas sobre esta questão na Justiça do Trabalho. São elas: É possível conciliar a evolução tecnológica com o Direito do Trabalho? Ou se trata de paradoxo inviável? A subordinação jurídica — principal requisito da relação de emprego — está presente no trabalho realizado pelos prestadores de serviços de transporte por aplicativos? Como o tema é tratado no Direito Comparado? O Direito é capaz de atender aos anseios e demandas desta nova categoria de trabalhadores?

O avanço da tecnologia faz parte da história. Desde a primeira Revolução Industrial, no século 18, até a Indústria 4.0, no século 21, com a robótica, observa-se evolução nas relações sociais e jurídicas, bem como dos modos de produção. Com a internet e a inteligência artificial, chega-se a cogitar a dispensabilidade humana na prestação de serviços, com o fim dos empregos e, via de consequência, do próprio Direito do Trabalho.

Prefiro acreditar na sobrevida do Direito do Trabalho que, especialmente durante a pandemia, tem se mostrado um instrumento legítimo para a salvaguarda dos direitos sociais. O Direito tem acompanhado essa evolução e a ideia do trabalho subordinado já existe há muito tempo. Por isso, não vejo nenhum paradoxo entre tecnologia e intervenção do Estado nas relações privadas. O que existe é uma nova faceta da subordinação jurídica, denominada de subordinação algorítmica, que está presente no trabalho prestado via plataformas digitais.

Vivemos a era dos aplicativos. A chamada Indústria 4.0 é notadamente marcada por uma possível e desejável desnecessidade da intervenção humana, que eclode com a inteligência artificial. Crowdsourcing, ciberespaço, e-marketplace, gig economy, work on demand, trabalhador just in time são expressões que passaram a surgir de forma usual nas discussões jurídicas.

Precisamos então revisitar alguns conceitos clássicos. Para que determinado vínculo de prestação de serviços seja considerado típica relação de emprego, faz-se necessário o enquadramento na moldura estabelecida pelo caput dos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho. A CLT é muito clara: “Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”

Pois bem, a Uber, como está em seu site, “não emprega nenhum motorista e não é dona de nenhum carro”, oferta “uma plataforma tecnológica para que motoristas parceiros aumentem seus rendimentos e para que usuários encontrem motoristas confiáveis e desfrutem de viagens confortáveis”. Infere-se, portanto, que ela intermedeia clientes (passageiros) a motoristas (“parceiros”), na prestação de serviço de transporte, sem se intitular empresa deste ramo, mas de tecnologia (via aplicativo). Além disso, aufere um percentual sobre o valor das corridas, calculado por ela própria (por meio de métricas), sem nenhuma ingerência ou intervenção do “parceiro”.

Convém recordar que o Direito do Trabalho é permeado pelo princípio da primazia da realidade, não inviabilizando, pois, configuração da relação de emprego qualquer roupagem futurista disfarçada de labor autônomo. Superados esses aspectos, as maiores controvérsias sobre a caracterização do vínculo empregatício giram em torno da subordinação e da alteridade.

O debate em torno do modelo clássico de subordinação nos leva a concluir que a uberização não surge com o universo da economia digital: suas bases estão em formação há tempos no mundo do trabalho, nas subcontratações dos mais variados tipos, como nos casos da terceirização e da quarteirização.

Advém, então, a ideia de um novo modelo de subordinação que se ajustaria, como luva, aos tempos atuais. Trata-se da subordinação algorítmica, aquela verificada com a utilização de aparato tecnológico, onde as ordens e imposições são apenas “sugeridas” e numa faceta mais amena. Vale recordar, ainda, que a CLT refere à dependência e que o conceito de subordinação foi criado a partir desta ideia, ou seja, está em constante evolução.

Nesse momento, vem bem a calhar relembrar o disposto no parágrafo único do art. 6º da CLT, segundo o qual “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

Quanto à subordinação, há uma série de contradições de difícil aceitação. Muito embora a Uber negue contratar seus parceiros, o certo é que pode descadastrá-los da plataforma, por vários motivos. Ou seja: a Uber não contrata, mas demite.

A circunstância, sempre salientada, acerca da autonomia que o motorista possui em permanecer (ou não) conectado ao aplicativo, também não impressiona. Os trabalhadores são estimulados a estar permanentemente online, até porque a média de aceitação de corridas, se baixa, poderá implicar sua desativação. Portanto, chega-se à conclusão de que é possível o enquadramento do prestador de serviço à Uber na moldura do disposto pelo art. 3º da CLT, inclusive, com respaldo constitucional.

Até o momento, a discussão sobre a relação jurídica de emprego envolvendo motoristas de aplicativos chegou ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) por meio de apenas seis ações judiciais, todas com pedidos julgados improcedentes, à exceção da última, cuja conclusão ocorreu em 6 de abril de 2022. Nas instâncias inferiores, a conclusão pela rejeição dos pedidos vem sendo a mesma — em sua grande maioria, em descompasso flagrante às decisões das cortes internacionais. Contudo, percebe-se uma ligeira tendência à modificação, a partir de 2020 — culminando com a recente decisão do TST a que já me referi.

O que justifica essa mudança é a intensificação dos debates, a repercussão das decisões internacionais e, finalmente, o próprio aumento das ações no Judiciário trabalhista. Vale registrar também a tendência da Uber em manipular a jurisprudência, pondo fim aos litígios por meio de acordos judiciais, com cláusula de confidencialidade, quando percebe a possibilidade de decisões em seu desfavor — inclusive perante o TST.

Como visto, concluímos pela possibilidade plena de restar configurada a relação empregatícia entre o motorista e a Uber, ante o disposto na legislação brasileira, ressaltando-se o respaldo constitucional para tanto e a jurisprudência comparada.

Mas, para além disso, torna-se imperioso destacar quem defenda uma terceira via, não mais restrita à discussão empregado/não empregado. Para estes, não se pode negar tutela jurídica a uma parcela de trabalhadores, pelo simples fato de não se amoldarem ao conceito clássico de subordinação. Ademais, eventual ausência de vínculo empregatício não impede sua organização para atuação coletiva.

Como ressaltado pelo ministro Maurício Godinho Delgado — relator da decisão que reconheceu a relação jurídica de emprego no TST:

“O fato é que a omissão do legislador não faz desaparecer nem a Constituição da República, nem o Direito do país e cabe ao magistrado fazer o enquadramento das normas no fato e que o fato seja regulado pelo Direito”.

RONALDO CALLADO – Juiz titular da 38ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 1ª Região (Amatra 1), especialista em Poder Judiciário pela FGV Rio e mestrando em direito pela UNESA < VOLTAR