29 de novembro de 2021 . 13:46

Filme aborda ponto de vista dos negros, diz diretora de ‘A Última Abolição’

Criar um filme cujo discurso abordasse o ponto de vista dos pesquisadores e movimentos negros e, também, convidasse a branquitude a se ver e pensar fora da zona de conforto. Esse foi o objetivo alcançado por Alice Gomes com o documentário “A Última Abolição”. Na sexta-feira (26), a roteirista e diretora conversou sobre o processo de criação e também sobre aspectos da obra com a juíza do Trabalho Daniela Muller e com a advogada e socióloga Magna Corrêa. O juiz Guilherme Cerqueira mediou o encontro, que foi transmitido no canal da AMATRA1 no YouTube e na página do Facebook.

Alice Gomes contou que a ideia do documentário surgiu durante o trabalho em um projeto ficcional sobre a princesa Isabel. Como estava fazendo a assistência de pesquisa e alertou sobre a relevância de dar destaque aos líderes e movimentos negros que atuaram pela abolição da escravatura, foi indicada como diretora do documentário.

“Fiquei muito honrada mas, também, preocupada, porque sei a importância do lugar de fala, de os negros contarem essa história. Então, liguei para a Luciana Barreto e ela esteve desde o começo comigo, fazendo as pautas das entrevistas e conduzindo as entrevistas no off camera, porque eu achava que o diálogo com o entrevistado seria diferente se fosse com ela. Chamamos também o Jeferson De para ser o consultor artístico. Ele lia todo o material e nos dava conselhos com base na visão crítica”, disse.

Do lugar de fala de uma pessoa branca que se incomoda com os problemas sociais, Alice seguiu as orientações dos companheiros na criação de um filme convidativo, com especialistas de diferentes áreas e “extremamente conhecedores dos temas”. Com uma hora e meia de duração após finalizado, a produção contou com mais de 70 horas de material gravado.

“Não adianta ser um filme que ‘chegue com o pé na porta’ porque, se estiver passando no canal a cabo, as pessoas vão trocar de canal ou não vão absorver a mensagem. Então, o tom no filme, apesar de ser crítico e indignado, convida à reflexão”, pontuou.

A live fez parte da iniciativa da Diretoria de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1 pelo Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. Na semana anterior, a associação, em parceria com a produtora Gávea Filmes, disponibilizou a exibição do documentário aos associados.

Para o juiz Guilherme Cerqueira, a data visa pensar o que se passou com a população negra no passado, o que passa no presente e o que passará no futuro. “Abordamos, a partir do filme, a escravidão no Brasil, com enfoque no período de escravidão, nos movimentos abolicionistas, na resistência escrava e no papel das mulheres nisso, nas discussões da elite do país no período e, inclusive, na assinatura da Lei Áurea e nas consequências para a população negra após a abolição”, afirmou o magistrado.

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Magna Corrêa ressaltou a relevância do filme, tendo como base os cenários social e político atuais. Na análise da advogada e socióloga, o momento é “tentativa de desmonte por parte do Estado brasileiro”, com a promoção de negação e revisionismo acrítico da História e epistemicídio.

“O documentário é bastante consistente e impactante. Contempla, justamente, questões permanentes, que estão decididamente enterradas no nosso passado escravocrata e, infelizmente, continuam. É muito significativo e provocativo, e acredito que sua grande intenção é o despertar de uma consciência crítica, o reavivar de uma história que, infelizmente, nos últimos anos, vem sendo objeto de questionamento devido ao preocupante avanço de setores conservadores.”

A obra também acentua o papel da resistência dos afrodescentes, disse Magna, classificando o filme como “cinema de combate”. “O trabalho com certeza foi árduo, pois vemos a reunião de um rol de pesquisadores que estão espalhados pelo país, exercendo função de resistência, fazendo pesquisas e ciência, sobretudo em relação à questão da escravidão, que permanece e é visível no racismo projetado na consciência e imaginário coletivos da sociedade brasileira”, afirmou.

Daniela Muller fez um paralelo entre o consciente coletivo e o Direito. A juíza pontuou que as análises de processos e das leis se dão com base nas referências adquiridas ao longo da vida, e muitas dessas referências são formadas por meio de produtos culturais, como cinema, teatro e documentários.

“Percebo que temos, infelizmente, pelo menos no meio jurídico, um referencial muito pobre e renegado desse passado. O filme tem o mérito de nos convidar a pensar e olhar o outro lado, conhecer o passado. O objetivo de falar dessa questão pensada de forma dinâmica foi totalmente atingido.”

A necessidade de enriquecer as referências foi destacada por Daniela. Ela contou que, em sua pesquisa de mestrado, as grandes referências dos magistrados sobre a escravidão foram as obras “Escrava Isaura” e “12 anos de escravidão”. “Sabemos muito da nossa história, do que aconteceu.”

A magistrada disse, ainda, ser preciso enegrecer, abrasileirar e descolonizar o Direito do Trabalho, já que nas universidades ensina-se que a especialidade jurídica foi trazida da Europa para o Brasil. “Se tivemos uma greve superarticulada que durou uma semana, isso não foi pouca coisa”, pontuou, citando um momento reproduzido no documentário. 

As participantes falaram também sobre o trabalho doméstico como herança escravocrata, feminismo negro, democracia racial e ideia do “homem cordial”, ações afirmativas e outros tópicos debatidos no documentário.

Veja a live na íntegra:
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