08 de março de 2021 . 12:01

Giselle Bondim trata da invisibilização do trabalho doméstico das mulheres

Na coluna “Mulheres, por elas mesmas” desta segunda-feira (8), Dia Internacional da Mulher, a desembargadora do Trabalho Giselle Bondim publica o texto “A invisibilização do trabalho doméstico das mulheres”. A magistrada se inspirou nos livros “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, e “O Lado Invisível da Economia: uma visão feminista”, de Katrine Marçal. Desenvolvido pela Diretoria de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1, o projeto divulga, a cada segunda-feira de março, um artigo produzido por uma magistrada, a partir de uma obra literária ou cinematográfica.

A invisibilização do trabalho doméstico das mulheres, por Giselle Bondim

A AMATRA me honra com um convite para falar sobre mulheres e suas questões, em comemoração ao Dia Internacional das Mulheres.

A partir do delicioso livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha (1), escolhi falar do trabalho invisível das mulheres (ou melhor, invisibilizado). A narrativa me remete muito diretamente às minhas avós, mãe e tias, mas que certamente também é a história de uma enormidade de mulheres que foi impedida de exercer outras profissões que não fossem “do lar” ou “prendas domésticas”, como eram obrigadas a escrever em suas qualificações. 

Antenor e Eurídice são os personagens principais. Na noite de núpcias, Antenor desconfia que Eurídice não era mais virgem. Pensa em “devolvê-la”, mas pouco tempo depois muda de ideia. A frase que demonstra essa mudança é a seguinte: “Nas semanas seguintes, a coisa acalmou, e Antenor achou que não precisava devolver a mulher. Ela sabia desaparecer com os pedaços de cebola, lavava e passava muito bem, falava pouco e tinha um traseiro bonito.” (2)

Essa frase sintetiza o que se esperava de uma mulher nos anos 50 e 60, trabalho doméstico, sexo e silêncio. Um objeto funcional de carne e osso.

E logo a seguir, Martha Batalha explica o motivo de tanta sujeição feminina: “Ela sempre achou que não valia muito. Ninguém vale muito quando diz ao moço do censo que no campo profissão ele deve escrever as palavras ‘Do Lar’.” (3)

Um pouco mais adiante no tempo, nos anos 80, meu orgulho era preencher como qualificação “Estudante” porque ser estudante indicava que o meu futuro não seria “Do Lar” como eram minha mãe, avós e tias, às quais, diga-se de passagem, eu via trabalhar dia e noite em tarefas que me pareciam aborrecidíssimas como lavar, passar, varrer, cozinhar, encerar o chão, tirar pó, dar banho nas crianças e fazer curativos nos idosos…

Os tempos eram outros e as mulheres já começavam a trabalhar fora. Via de regra, nada muito arrojado, professoras, secretárias, vendedoras. Fiz logo um curso de datilografia; saber datilografar era um emprego certo como secretária. Não imaginava que um dia seria juíza. Embora o meu pai fosse advogado, não ouvia falar de juízas, apenas de juízes.

Não é que eu pensasse que não podia, simplesmente não me ocorria.

E aí vem outro trecho do livro que explica porque – apesar de todos os obstáculos – cada vez mais, mulheres alcançam postos importantes em todas as áreas, inclusive nos governos. “Porque Eurídice, vejam vocês, era mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas…” (4)

Porque é isso, nós – as mulheres – somos tão boas quanto os homens, e hoje já estão superadas crenças de que existem impedimentos biológicos para determinadas atividades. As diferenças biológicas não nos atrapalham em nada. Somos capazes de mergulhar fundo e voar alto, se é que me faço entender.

E voltando às avós, mães e tias que foram condicionadas a ser “Do lar”, o que lhes resta quando não possuem mais forças para o trabalho? Resta a dependência econômica a maridos, filhos, sobrinhos e um baixo amor-próprio que as faz acreditar que pouco valem, algumas vezes provocando doenças sérias.

Diriam alguns distraídos que isso seria resultado da opção que fizeram por não ter uma atividade econômica. Esse, contudo, é o engano. Primeiro porque não era opção, era imposto, era o socialmente aceito, segundo porque as atividades chamadas “Do lar” possuem forte impacto na economia mundial e devem ser valoradas.

E aí, buscando o valor do trabalho doméstico, cheguei a um segundo livro, que também recomendo fortemente, O Lado Invisível da Economia: uma visão feminista, de Katrine Marçal. (5) Apesar do tema que considero árido (ou será que árido é nosso cenário econômico?), o livro é instigante.

Katrine Marçal afirma que é incorreto dizer que as mulheres foram trabalhar nos anos 60, pois o que houve mesmo foi uma troca de emprego. De trabalho não remunerado, as mulheres passaram a competir com os homens no mercado de trabalho. (6)

E sobre o trabalho doméstico, ela exemplifica que criar filhos, cultivar um jardim, cozinhar para os irmãos, ordenhar a vaca da família, costurar roupas para os parentes, nada disso é considerado atividade produtiva e entrará no cálculo do PIB (Produto Interno Bruto) de um país. (7) Tudo isso é invisível e, consequentemente, pouco relevante. Aqui deixo claro que não se está falando das trabalhadoras em residência, pois, como assalariadas, são consideradas no PIB.

Ainda de acordo com Katrine Marçal, no Canadá, a agência de estatísticas nacionais tentou medir o valor do trabalho não remunerado e concluiu que correspondia a algo entre 30,6 e 41,4 por cento do PIB. O primeiro número é calculado pela substituição do trabalho não remunerado por pessoas remuneradas, e o segundo no quanto uma pessoa ganharia se estivesse recebendo um salário enquanto faz o trabalho doméstico. (8) Resumindo a um cálculo grosseiro, chegamos a 36 por cento do PIB. Portanto, mais de um terço do PIB do Canadá é trabalho feminino e invisibilizado.

No Brasil, segundo o IBGE, as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas por semana para atividades domésticas e cuidados com pessoas, ao passo que os homens costumam dedicar apenas 10,9 horas. Mesmo entre aqueles que “trabalham fora”, as mulheres cumprem, em média, 8,2 horas a mais em obrigações domésticas do que os homens. (9) A economista Hildete Pereira de Melo, professora de economia da Universidade Federal Fluminense, estimou que, em 2015, o trabalho nos domicílios brasileiros corresponderia a 11% do PIB, equivalente a 634,3 bilhões de reais. (10)

As atividades domésticas e de cuidado são essenciais para que aqueles que saem para o trabalho externo possam desempenhar suas funções com tranquilidade. Casas limpas, roupas asseadas, alimentos prontos para consumo e cuidados com crianças, doentes e idosos acabam por permitir que as indústrias, comércio, atividades agrícolas, repartições, dentre outros locais de trabalho funcionem de modo eficiente. E esse trabalho, na maior parte das vezes, é desempenhado pelas mulheres, primeiro pelas mulheres que ficavam em casa e, atualmente, também pelas mulheres que trabalham fora de casa e acumulam uma dupla jornada. Peço licença aos homens que contribuem de forma igualitária na divisão dos afazeres domésticos, vocês são minoria.

Trata-se de trabalho real, produtivo e que deve ser remunerado. Caso essas avós, mães e tias às quais se refere o livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão tivessem recebido pagamento por essa atividade - necessária para todas as cadeias produtivas do mundo -, teriam tido vida mais digna, liberdade de movimentos e, principalmente, não seriam economicamente dependentes de familiares.

“Não existe almoço grátis” é um dos lemas mais conhecidos da economia e, por isso mesmo, o almoço que sua mãe fez para você e o que você faz para o seu filho devem ser valorados e considerados nos cálculos econômicos, pois é a partir deles que outros cálculos são feitos, como os de aposentadoria e benefícios sociais, além de possibilitar a identificação da necessidade de serviços públicos essenciais como creches, escolas integrais e lares para idosos.

Segundo Katrine Marçal, 17 por cento das britânicas desempregadas pediram demissão de seu último emprego para cuidar de outra pessoa, já os homens que assim o fizeram correspondem a 1 por cento (11). Eu mesma conheço várias juízas e servidoras públicas que se aposentaram precocemente para cuidar de parentes idosos, filhos incapacitados ou, simplesmente, para ajudar no cuidado dos netos. Por outro lado, não conheço nenhum juiz ou servidor na mesma situação. Mas aqui a ressalva é que, no Brasil, esse é um movimento da classe média, porque o da classe baixa, na minha percepção, é de tentar uma nova atividade remunerada após a aposentadoria.

Ela também menciona que mães donas de casa se tornaram um fenômeno das camadas sociais mais altas ou mais baixas. Os super-ricos podem viver com apenas um salário, já para as mulheres pobres não compensa trabalhar fora, pois seus salários não cobrirão suas despesas com a manutenção da casa e família. (12)

Portanto, é preciso que comecemos a pensar formas de remunerar e aposentar as trabalhadoras do lar, especialmente aquelas com baixa renda, sem que consideremos isso um peso para o Estado, porque, de fato, não é. Ao contrário, é trabalho indispensável para que a atividade econômica funcione adequadamente.

Trata-se, sobretudo, de mudar a cultura, valorizando e reconhecendo a importância do trabalho realizado nas casas de cada família, sem considerar aproveitadoras aquelas que recebem auxílios sociais por apenas desempenharem atividades domésticas.

Do nascimento à morte, somos todos dependentes de cuidados, em alguns momentos mais, em outros menos, isso certamente é variável. Nessa equação, a constante é que precisamos uns dos outros. Reconhecendo esse fato simples da vida, contribuiremos para uma sociedade mais igual, justa e fraterna, homenageando de forma sincera as mulheres que nos antecederam e sedimentando o caminho para as que nos sucederem – nossas filhas, sobrinhas e netas – possam ir além.

Notas:

(1) BATALHA, Martha. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2016

(2) BATALHA, Martha. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 11

(3) BATALHA, Martha. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 11

(4) BATALHA, Martha. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 12

(5) MARÇAL, Katrine. O Lado Invisível da Economia: uma visão feminista, tradução Laura Folgueira, 1ª. Edição, São Paulo, Alaúde Editorial, 2017

(6) MARÇAL, Katrine. O Lado Invisível da Economia: uma visão feminista, tradução Laura Folgueira, 1ª. Edição, São Paulo, Alaúde Editorial, 2017, p. 14

(7) MARÇAL, Katrine. O Lado Invisível da Economia: uma visão feminista, tradução Laura Folgueira, 1ª. Edição, São Paulo, Alaúde Editorial, 2017, p. 24

(8) MARÇAL, Katrine. O Lado Invisível da Economia: uma visão feminista, tradução Laura Folgueira, 1ª. Edição, São Paulo, Alaúde Editorial, 2017, p. 67/68

(9)  https://censo2021.ibge.gov.br/2012-agencia-de-noticias/noticias/24267-mulheres-dedicam-quase-o-dobro-dotempo-dos-homens-em-tarefas-domesticas.html (consultado em 04.03.2020)

(10) http://www.uff.br/?q=noticias/09-05-2018/pesquisa-da-uff-destaca-impacto-do-trabalho-domestico-na-economianacional (consultado em 04.03.2021)

(11) MARÇAL, Katrine. O Lado Invisível da Economia: uma visão feminista, tradução Laura Folgueira, 1a . Edição, São Paulo, Alaúde Editorial, 2017, p. 192

(12) MARÇAL, Katrine. O Lado Invisível da Economia: uma visão feminista, tradução Laura Folgueira, 1a . Edição, São Paulo, Alaúde Editorial, 2017, p. 192

Veja o primeiro texto da coluna “Mulheres, por elas mesmas”:

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