07 de agosto de 2020 . 14:33

Juiz do Trabalho não pode tolerar o retrocesso, aponta Alkmim, em artigo

O desembargador Gustavo Tadeu Alkmim publicou o artigo “Justiça Do Trabalho: Pra Quê?”, nesta quinta-feira (6), no portal Justificando. No texto, o magistrado destacou que, diante das presentes mudanças nas relações trabalhistas, resta à JT reforçar o Direito do Trabalho “na sua essência, ressaltando o seu princípio mais caro, o protecionista”.

“O juiz do Trabalho contemporâneo não tem o direito de ficar indiferente à pretensa destruição do Direito do Trabalho; não pode tolerar o retrocesso como se nada tivesse a ver com isso. Não tem este direito. Precisa sim cumprir o ideal da Justiça do Trabalho”, afirmou o ex-presidente da AMATRA1.

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Veja o artigo na íntegra:

Justiça Do Trabalho: Pra Quê?

Na entrevista para uma vaga na transportadora, diz o britânico Ricky: “Quero trabalhar sozinho, sem chefe, dono do meu destino”. O preposto retruca: “Aqui, você não trabalha para a gente; trabalha com a gente”.

Ricky irá se endividar para pagar a van, seu instrumento de trabalho. O seu expediente será de 14 horas por dia, 6 vezes por semana. O inevitável cansaço e o afastamento familiar gerarão crises pessoais, frustação e a sensação de injustiça. Após ser assaltado, aguardar horas no hospital público, com recomendação médica de repouso, a transportadora, indiferente ao drama de Ricky, não aceitará a justificativa, descontará os dias e ele ainda vai ficar devendo à empresa.

Ernesto é um trabalhador argentino. Tem 63 anos. Entrega pizza usando sua bike. Atropelado por um carro, imobilizado e machucado, manda um zap para a empresa. A resposta é seca: “Como está o pedido, ainda em condições de ser entregue?”. Mesmo Ernesto avisando que não podia se mover, a empresa exige: “É parte do procedimento, você precisa mandar uma foto para cancelarmos o pedido”.

As duas histórias poderiam acabar aí. Retratam o nosso tempo: a ganância, o deboche, o ser humano valendo menos que mercadoria. Quadro constrangedor, mas que se tornou banal. Repete-se desde o nascedouro do capitalismo – sistema que traz, no seu âmago, a sanha pelo lucro e a marca da desigualdade. Houve um tempo, no século passado, em que limites foram ultrapassados — e o trabalhador reagiu: reclamou, organizou-se, posicionou-se, quebrou máquinas e empresas, derrubou governos, revolucionou, recuou e avançou, fez greves, conciliou. Identificou os seus companheiros e camaradas. Unidos, sofrendo na carne a exploração, identificaram seus exploradores. Viram-se numa luta de classes. O sistema cedeu: legislou. Com isso, abrandou a luta. Mas o tempo traz consigo a dinâmica dos fatos, mudando muita coisa de lugar. E o sistema tem uma inesgotável capacidade de se metamorfosear. Passou, então, a apropriar-se de símbolos de outrora. A ansiada liberdade de ser e estar transformou-se na liberdade do indivíduo ser “dono do seu próprio destino”, único responsável por seu sucesso. E pelo seu fracasso. A luta mudou de lugar: passou a ser do sujeito com ele mesmo. Na vida. No trabalho. 

Chegamos à segunda parte das histórias. Mesmo com a autoestima em frangalhos, alquebrado e convalescente, Ricky sai porta afora, desobedecendo às ordens médicas e aos apelos da mulher e filhos, e parte com a sua van para mais um dia de trabalho. Quanto a Ernesto, diante da repercussão do episódio, deu declarações defendendo a empresa: “A dúvida é pertinente; muitos entregadores mentem”. Ambos reproduzem uma narrativa de que é deles a responsabilidade pelo “risco do negócio”. Supõem-se parceiros da empresa. Nesta condição, buscam alcançar metas inalcançáveis. Isolados não conseguem nomear o conflito, não identificam o explorador — e entoam o mantra: são empreendedores, colaboradores, não trabalham “para”, trabalham “com”; não são subordinados, são parasubordinados. 

Aos dois personagens, tantos outros poderiam se unir. De motoristas por aplicativo a teletrabalhadores. Possuem traço comum: perderam o direito à desconexão. Suas vidas estão à disposição do trabalho. Vivem uma realidade que remete aos primórdios da Revolução Industrial. Mas são atuais.

Há quem diga que estamos diante de “novas” relações de trabalho. No entanto, ao tirarmos o invólucro da novidade, vimos mais do mesmo: a velha exploração do homem pelo homem. Trazem em si o elemento “subordinação” – ainda que com outra roupagem. Ainda que metamorfoseado. Não é preciso forçar a vista para verificar a presença dos velhos pratos da balança capital x trabalho grotescamente desequilibrados. Que se dê ao imbróglio, então, a antiga saída estatal: a lei protetiva. E na nossa terra Pindorama esta lei já existe, não precisa ser inventada: a CLT. Por mais que a tenham castigado, ela continua movida pelo princípio tutelar ao trabalhador, no que se inclui todo e qualquer trabalho subordinado. E o instrumento para fazer valer a lei também, há muito, existe: a Justiça do Trabalho.

Porém, a par da obviedade da saída, há quem não a veja. Ecoa-se, não de hoje, a reprodução de um discurso (i) que relega o trabalho formal a coisa menor, ultrapassada, incompatível com os tempos atuais, e (ii) garante ao trabalhador que ele é partícipe do sucesso empresarial. O discurso ganha ressonância por vários meios e modos (você é livre! é capaz! pode ser um vencedor!), e afasta, cada vez mais, o trabalhador da CLT. Vimos isso no bojo da malfadada Reforma Trabalhista, assim como na legislação esparsa, que, não raro, tem retirado de certas categorias o manto celetista. Grijalbo Coutinho¹ cita alguns exemplos contemplados com a pretensa imunidade trabalhista: transportadores de cargas na sua relação com os motoristas (Lei 11.442/2007); proprietários dos salões de beleza e similares em relação de trabalho mantida com cabeleireiros, manicures e outros profissionais do mesmo ramo (Lei 13.352/2016); tomadores de serviços domésticos e os trabalhadores denominados diaristas que laboram até duas vezes por semana na mesma residência (Lei Complementar 150/ 2015). Acresçam-se hipóteses mais antigas: as cooperativas de trabalho (Lei 8.949/94), as imobiliárias e incorporadoras e seus corretores (Lei 6.530/78), além dos representantes comerciais (Lei 4.886/65). Isso sem falar na “pejotização”. 

Há, ainda, o projeto de lei 3748/2020, criando figura híbrida para os trabalhadores de aplicativo, que o Rodrigo Carelli chama de “pegadinha”: “o tempo em que a pessoa está ligada no aplicativo, aguardando, não é considerado. O PL, na verdade, mantém o sistema, apesar de conceder parcos direitos”.²

São tendências que reforçam o discurso de que o trabalhador não é empregado; é parceiro. A quarentena do Covid-19 alargou este quadro. Além dos entregadores delivery, tidos como “essenciais”, trouxe à cena o “teletrabalho” — um labor que, feito em casa de forma virtual, ocupa o dia todo, avança madrugadas e finais de semana, divide-se entre afazeres familiares e domésticos. O home-office é, sem dúvida, um dos grandes efeitos da pandemia. Envolve trabalhadores que, arcando com os custos materiais e emocionais, são supostos donos de seus horários — só que nunca se desconectam. Tidos como meros prestadores de serviços são, na expressão de Ricardo Antunes, “escravos digitais”, filão descoberto pelos “laboratórios do capital”, que pode ser assim resumido: exploração e espoliação acentuadas e nenhum direito do trabalho. “Se a desmedida empresarial continuar ditando o tom, teremos mais informalização com informatização, ‘justificada’ pela necessidade de recuperação da economia pós-Covid-19. E sabemos que a existência de uma monumental força sobrante de trabalho favorece sobremaneira essa tendência destrutiva do capital pós-pandêmico”³, frisa Antunes.

O trabalho no mundo digital exige produtividade, metas, números. E conduz à invisibilidade e ao isolamento. A ação e a atuação coletiva não fazem parte do seu universo de possibilidades. O trabalhador não vê o outro, seu colega; vive para si, por si e para o trabalho. Sem as garantias protetivas do direito do trabalho. Sem garantia alguma. Culpa-se pelo fracasso. São primos-irmãos dos motoristas e entregadores de plataforma digital.

A Justiça do Trabalho precisa responder a estes trabalhadores – dizer-lhes da subordinação; esclarecer-lhes que, se há lucro, há patrão, ainda que em forma de algoritmo; lembrar-lhes que têm sim direitos. Miremos nos exemplos dos nossos personagens. Ricky é fruto da ficção (filme Você Não Estava Aqui, do Ken Loach) e Ernesto é filho da realidade — ambos são simbólicos. Na entrevista para conseguir a vaga, Ricky debocha da condição de empregado formal (“nem pensar”, diz ele); Ernesto preocupa-se mais com a saúde da empresa do que com a sua própria. Segundo dados do IBGE, em março de 2020, eram 36,8 milhões de rickys e ernestos brasileiros (informais e sem direitos do trabalho).

O desemprego alcança números inconcebíveis (quase 13 milhões), realçando com cores fortes a desigualdade social – tão aceita e tão tolerada no nosso país. O discurso neoliberal está aí, no dia-a-dia, pronto, acabado e difundido. O contraponto se faz necessário. Sim, a exploração exacerbada pode provocar reação, como já aconteceu no passado. E novas formas de aglutinação podem surgir na busca por reivindicações coletivas (v. breque dos entregadores). Mas a pauta neoliberal avança incontinente. O que resta, então, à Justiça do Trabalho? Resta cumprir o seu ideal: dizer o Direito do Trabalho na sua essência, ressaltando o seu princípio mais caro, o protecionista. A prática judicial que afirma que no trabalho subordinado não há parceria, há emprego, pode embaçar o discurso neoliberal. E a afirmação desta prática é exclusiva do juiz do trabalho. Cabe a ele dizer que o rei está nu.

Nos passos do pai, Klaus Mann escreveu um grande livro, Mefisto, em que narra a história de Hendrik, um ator obcecado pela fama. Para tanto, renuncia aos seus valores e princípios, e tolera o nazismo ascendente na Alemanha hitlerista, indiferente às perseguições a seus colegas de palco. Ali, tolerância e indiferença traduziam um pacto com o diabo. No final, pressionado, censurado e intimidado (mesmo tolhida a arte é resistência) Hendrik pronuncia a frase derradeira: “O que querem de mim? Por que me perseguem? Por que são tão duros? Afinal, sou apenas um ator!”.

O juiz do trabalho contemporâneo não tem o direito de ficar indiferente à pretensa destruição do Direito do Trabalho; não pode tolerar o retrocesso como se nada tivesse a ver com isso. Não tem este direito. Precisa sim cumprir o ideal da Justiça do Trabalho. Ou terminará como Hendrik: Por que me perseguem e querem acabar comigo? Sou apenas um juiz do trabalho!

Notas:
(1) https://jornalggn.com.br/artigos/o-que-vai-restar-por-grijalbo-fernandes-coutinho/
(2) https://www.bbc.com/portuguese/geral-53411585
(3) https://www.diariodocentrodomundo.com.br/como-se-trama-a-uberizacao-total-por-ricardo-antunes/


*Foto: Gláucio Dettmar/Agência CNJ < VOLTAR