09 de março de 2020 . 13:47

Juíza Luciana Neves relata os desafios de viver com deficiência auditiva

Diagnosticada com perda auditiva aos 25 anos, a juíza do Trabalho Luciana Gonçalves de Oliveira Pereira das Neves, ex-presidente da AMATRA1 (2007-2009), revela, em depoimento tocante, como enfrenta diariamente as dificuldades inerentes à deficiência. Apesar de dizer não se sentir pessoalmente excluída, a magistrada contou exemplos de situações desagradáveis por que passa e disse que já foi preterida por não ter a audição plena. Ela acredita que a conscientização da sociedade é fundamental para o Brasil ser mais inclusivo.

“As pessoas precisam saber as dificuldades de quem vive a exclusão e ter consciência do quanto o comportamento delas pode melhorar ou piorar a condição do excluído”, disse.

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Participante da roda de conversa “Mulher e Diversidade”, que acontece às 14h30 desta quinta-feira (12), no Fórum da Lavradio, Luciana relatou como o avanço da deficiência auditiva ao longo dos anos impactou sua vida profissional. “Colher os depoimentos se tornou cansativo; termino a pauta de audiências exausta”, disse ela, que é magistrada desde 1996.

Leia a entrevista com a juíza do Trabalho Luciana Neves na íntegra:

AMATRA1: O que acarretou a perda auditiva?
Luciana Neves: A causa da perda auditiva é desconhecida. Aparentemente, nasci ouvindo. Pelo menos sempre achei que ouvia, mas hoje tenho dúvida quanto à qualidade da minha audição desde pequena. Segui a vida normalmente, inclusive fiz balé clássico e me lembro como gostava das músicas bem marcadas, dos sons graves, talvez porque isso fosse o mais audível. Aos 25 anos, comecei a achar que não estava ouvindo muito bem, atribuí a uma gripe e fui ao otorrinolaringologista. Fui diagnosticada com perda neurossensorial bilateral progressiva, com alteração entre o grave e o agudo, com perda maior no agudo. Não é só o som que diminui, mas há distorção concreta, devendo apenas realizar acompanhamento. As pessoas não percebiam a minha perda, o que era ótimo, convivia em sociedade sem problema. Até que comecei a não ouvir quando estava de costas. Com cerca de 35 anos, já juíza, um classista indagou se eu escutava bem. Vi que a perda estava perceptível para muitos. Me consultei com o filho dele, que era otorrino e me deu esperanças — inclusive falou sobre a possibilidade de usar aparelho auditivo. Fiquei desagradada com a hipótese por puro preconceito. Mas, depois da audiometria, foi pior — sem chance de aparelho. Fui aconselhada a fazer tratamento respiratório, coloquei aparelho nos dentes, fiz exercícios fonoaudiólogos para melhorar a fala e a musculatura facial. Tudo para melhorar a audição, em especial a externa. Aos 43, comecei a não conseguir falar ao telefone, ouvir rádio e as músicas que tanto amo. Soube da possibilidade de usar aparelho, mas demorei um pouco a procurar o assunto. Eram caros, em especial os mais modernos, que poderiam me atender. Coloquei meu primeiro aparelho, que não era perfeito, mas fazia diferença, em especial no trabalho. Em 2017, coloquei um aparelho moderno, com bluetooth, e já consigo falar com algumas pessoas ao telefone e ouvir música. Também há um dispositivo para ouvir “ao vivo” a que muitas vezes recorro em audiência, quando a dicção das pessoas não é boa. Mas também deu problema, passei a ouvir muito, e os barulhos em casa ficaram insuportáveis [risos>! Fez diferença, mas não é perfeito e, como a perda é progressiva, a qualidade adquirida vai diminuindo com o tempo.

A: Como é ser uma mulher portadora de deficiência em uma sociedade excludente?
LN: É importante evidenciar que a sociedade não considera a perda auditiva deficiência. Apenas quando se é completamente surdo a sociedade o considera deficiente. Isso é bem complicado, pois o desrespeito com o surdo que ouve acontece de forma reiterada. Aprendi a conviver com as caras e bocas de quem não acredita que ouço mas não compreendo, que preciso da repetição das frases e, para isso, não é preciso gritar nem se impacientar, basta repetir em tom normal. As legislações que concedem isenções ou benefícios para os deficientes excluem a perda auditiva. Isso é fruto de como a sociedade trata o surdo que ouve.

A: De que forma a perda auditiva impacta a sua atuação na magistratura
LN: Colher os depoimentos se tornou cansativo; termino a pauta de audiências exausta. Mas os secretários de audiência sempre me ajudam. Amo meus servidores; todos sempre me auxiliam quando preciso. Mas certa vez, quando era titular em Duque de Caxias, precisei de outro secretário de audiência, tive dificuldade em conseguir e ouvi de um servidor que não sairia de sua zona de conforto pois trabalhar comigo era “pesado”. E pior é o que chamo de “mau caratismo social”, pois há os que procuram tripudiar quando sabem que você ouve mal. Isso acontece em audiência. É impressionante como tentam mudar as coisas, como às vezes a audiência não rende por isso. Tudo é testemunhado pelos secretários.

A: Quais são as maiores dificuldades no dia a dia?
LN: É muito chato não conseguir ouvir a peça de teatro, a música no rádio, o filme nacional, depender de alguém para falar ao telefone por mim. Dependendo do expositor, perco falas em palestras, aulas e, quando há palestrantes estrangeiros, o sistema de tradução simultânea não funciona para quem tem perda auditiva. Lembro de uma vez que coloquei o fone no microfone do aparelho, o som ficava mais alto e uma pessoa ao lado pediu para eu trocar de lugar, pois a atrapalhava. Já fiquei ao lado da cabine das tradutoras para ver a fala, mas elas ficaram constrangidas. Uma vez teve uma que não gostou e, outra, que me escreveu um bilhete tão carinhoso que desabei a chorar. Aliás, acho que foi a única vez que chorei por isso. Hoje, preciso ler tudo. Só consigo me informar plenamente pela leitura!

A: Em que aspectos é necessário melhorar para o Brasil ser um país mais inclusivo?
LN: Precisamos de mais informação sobre as exclusões. Seja da mulher, do deficiente, do pobre, do gordo, do negro… As pessoas precisam saber as dificuldades de quem vive a exclusão. Precisam ter consciência do quanto o comportamento delas pode melhorar ou piorar a condição do excluído. Não me sinto excluída, pois trabalho para que isso não aconteça, mas sei que já fui preterida por não ter audição plena.

A: Qual é a importância da conscientização sobre inclusão social?
LN: Para mim, a conscientização social é fundamental. Devia acontecer nas escolas, nas ruas, nos estabelecimentos públicos e privados. < VOLTAR