13 de março de 2023 . 12:07

'O trabalhador infantil é o escravizado de amanhã', diz juíza Daniela Muller

Refugiados, travestis, ambulantes, domésticas - todos vítimas de trabalho análogo a escravizados. A escravidão contemporânea pode estar acontecendo no prédio que você mora ou trabalha, como relatou um porteiro ao professor Ricardo Rezende Figueira, coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC/NEPP–UFRJ). Esses e outros temas foram debatidos no “Seminário Trabalho Escravo – 20 anos da alteração do art. 149 do Código Penal e Repercussões Trabalhistas”, promovido pela AMATRA1, pelo MPT-RJ e pela UFRJ e encerrado na sexta-feira (10). O presidente da AMATRA1, Ronaldo Callado, abriu os debates.

A situação degradante de trabalho de congoleses e chineses no Rio de Janeiro foi abordada na apresentação de Ricardo Rezende. O padre e coordenador do GPTEC é uma voz ativa no combate ao trabalho escravo. No painel "Migrantes, Refugiados e Trabalho Escravo Contemporâneo no Rio de Janeiro", Rezende relatou histórias de horror vividas pelos refugiados, que sofrem violência física, ameaças, retenção de documentos, péssimas condições de moradia e higiene. 

"As pessoas eram aliciadas no sul da China e a dívida era contraída no aeroporto. Moravam de forma amontoada, em cima das pastelarias. Não falavam português, não ouviam sua música e tudo era tão diferente que vários fatores os levavam à depressão, ao sofrimento psicológico", contou.

As mesmas amarras modernas da ameaça, violência e retenção de documentos são usadas em outros grupos vulneráveis. O painel "Travestis e Exploração do Trabalho Sexual em Condições Análogas à de Escravo e Migração" trouxe depoimentos de transexuais prostituídos e explorados no Brasil e em outros países. 

O sociólogo Murilo Peixoto da Mota  (GPTEC/NEPP–UFRJ) apresentou histórias colhidas no seu trabalho de pesquisa. Em comum, os relatos trazem o sofrimento desde a infância de abusos e maus tratos, muitas vezes dentro das próprias famílias, e da pobreza, fazendo com que a prostituição pareça o único caminho. "Apanhava muito do avô porque andava em casa com vestidos da mãe. Aos 13 anos, foi tão espancada que ficou dias na cama. Na adolescência foi embora do Pará com a ajuda financeira de uma cafetina. Virou prostituta e, com dívida, apanhava."

Peixoto abordou ainda tráfico de pessoas com vítimas sendo enviadas para países, como a Itália, em redes de prostituição. "A cafetina credora está no Brasil, mas o grupo recebe a vítima na Itália. Recolhem documentos e celular para impedir o contato com o Brasil. O controle e a vigilância são constantes. Qualquer rebeldia é punida com violência física e há a ameaça à família no Brasil. O medo impede as fugas", afirmou.

O pesquisador concluiu que a violência sofrida ao longo da vida por travestis é um fator de exploração. E defendeu que "não se pode criminalizar as trabalhadoras do sexo. Elas devem ser respeitadas pelo direito de querer trabalhar como prostitutas". 

Glamour dos grandes eventos invisibiliza situação dos trabalhadores

Outra face do trabalho escravo contemporâneo está muitas vezes mais perto da sociedade, mas ainda assim segue invisibilizado. A mão de obra essencial para grandes eventos é muitas vezes explorada com jornadas exaustivas, falta de alojamentos e transporte, cobranças indevidas e até retenção da carteira de trabalho. O auditor fiscal do trabalho Raul Caparelli Vital Brasil (SRTE/RJ) comandou o painel "Experiência da Fiscalização na Prevenção ao Trabalho Análogo ao de Escravo em Grandes Eventos no Rio de Janeiro".



Vital destacou que nos últimos anos os casos de trabalho análogo à escravidão em zonas urbanas têm crescido em relação aos casos no meio rural. O auditor explicou que o trabalho de conscientização de trabalhadores, especialmente ambulantes, e dos empregadores de grandes eventos é essencial para a redução dos casos. Famosa pelo Carnaval, o Rock in Rio e o Maracanã, a cidade do Rio conta com fiscalização constante e avanços têm sido conquistados. Vital deu o exemplo positivo do Rock in Rio, que usa o Riocentro como alojamento para os trabalhadores.

O transporte dos empregados é uma das faces da exploração. "É comum ter trabalhadores que dormem no próprio local do evento, debaixo do palco, ao relento e o empregador faz vista grossa para isso porque o transporte é ineficiente", contou. 

Outro ponto destacado por Vital é o endividamento prévio. Os trabalhadores pagam para ser credenciados ou pagam ingresso do evento para ter chance de serem contratados. Os que vêm de fora do Rio ainda têm os custos de passagem e hospedagem. Conseguir trabalhar no evento é a única forma de recuperar algum dinheiro. 

Deputado estadual apresenta PL que aumenta punição para empresas

Convidado para o evento, o deputado estadual Prof. Josemar (PSOL) apresentou brevemente seu Projeto de Lei (PL), em discussão na Alerj, que dispõe de sanções para empresas que praticam trabalho infantil e trabalho análogo à escravidão. O deputado explicou que entre as propostas está o cancelamento da inscrição no cadastro de contribuinte do ICMS, interdição do estabelecimento e multa de 10 mil a 20 mil Ufirs (cerca de R$ 43 mil a R$ 86 mil).

A juíza do Trabalho Daniela Muller, diretora da AMATRA1 e uma das organizadoras do seminário, parabenizou a iniciativa, mas ressaltou que "aprovar a lei é a primeira etapa e dar cumprimento a ela é uma batalha". Daniela destacou ainda que o trabalho infantil tem sido naturalizado na sociedade e alertou. "O trabalhador infantil é o trabalhador escravizado de amanhã".



O último painel do evento foi da procuradora do Trabalho e coordenadora regional da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do MPT-RJ, Guadalupe Louro Turos Couto, uma das organizadoras do evento. No painel "Política Pública Judicial de Combate ao Trabalho Escravo Contemporâneo no Rio de Janeiro: Ação Integrada", Guadalupe defendeu a integração de todos os entes envolvidos no combate ao trabalho escravo. 

A procuradora ressaltou que, segundo a ONU, o trabalho análogo à escravidão é a segunda atividade economica mais lucrativa do mundo, só perde para o narcotráfico. "É preciso que a gente reflita e se una", afirmou. Entre as ações propostas, está um banco de dados com informações de ações e sentenças coletivas disponíveis para o judiciário no PJE.

Guadalupe comemorou a realização do evento reunindo tantos agentes e destacou o papel da Academia no debate. "É muito importante essa articulação. O MPT está investigando as denúncias. A Academia sai deste castelo em que estamos e conversa com as pessoas, com a sociedade, e traz dados e elementos para nós. Eles são os formadores de opinião. Os alunos que estão aqui hoje vão levar esses conteúdos para casa, para a família. É preciso conscientizar a sociedade contra o trabalho escravo contemporâneo", concluiu.

Foto Principal/Divulgação MPT-RJ:  Presidente da AMATRA1, Ronaldo Callado, entre o professor e padre Ricardo Rezende Figueira e o sociólogo Murilo Peixoto da Mota, da UFRJ

Primeira foto Interna/Divulgação MPT-RJ: Juíza Daniella Muller, entre o deputado estadual  Prof. Josemar (PSOL) e o auditor fiscal do trabalho Raul Caparelli Vital Brasil

Segunda Foto Interna/Divulgação MPT-RJ: Procuradora do Trabalho e coordenadora regional da Conaete do MPT-RJ, Guadalupe Louro Turos Couto < VOLTAR