28 de abril de 2021 . 16:34

Trabalho precário acidenta, adoece e mata, afirma médica sanitarista

Para marcar o Dia Nacional em Memória das Vítimas de Acidentes e Doenças do Trabalho, lembrado nesta quarta-feira (28), e o “Abril Verde”, mês de conscientização sobre a importância do trabalho seguro e saudável, a Diretoria de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1 entrevistou a médica sanitarista e professora da UFRJ Rosangela Gaze. Na conversa, a médica afirmou que “a precarização estrutural do trabalho e o perfil produtivo brasileiro submetem trabalhadores a um processo de se acidentar, adoecer e morrer em silêncio no trabalho para manter (sub)empregos”.

Integrante do Fórum Intersindical Saúde-Trabalho-Direito/RJ e o Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural, na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fiocruz, ela pontuou que a ocorrência de acidentes e agravos ligados à prática laboral resultam de diferentes fatores das relações saúde-trabalho-doença. Segundo Rosangela, os dados, já alarmantes - 623,8 milhões de casos notificados por CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho) entre 2012 e 2018 -, são subnotificados no Brasil e em outros países.

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“Aqui, é agravada pela histórica negligência quanto à centralidade do trabalho na determinação social do processo saúde-doença e pelo descompasso entre discurso e prática em relação à Vigilância em Saúde e seus componentes (Vigilâncias em Saúde do Trabalhador, Epidemiológica, Sanitária, Ambiental)”, disse.

A relação entre a contaminação do novo coronavírus e a atividade profissional durante a pandemia também foi tratada pela médica na entrevista. Ela destacou que “a relação da Covid-19 com o ‘fator de risco’ aglomeração está bem estabelecida e válida para trabalhadores de todos os setores produtivos”. E ressaltou que a divisão dos grupos prioritários de trabalhadores para a imunização contra a doença seguiram a lógica negacionista com o que o governo tem tratado a pandemia.

Veja a entrevista na íntegra:

AMATRA1: Como estão os estudos sobre a relação entre Covid-19 e trabalho em segmentos determinados, como o de trabalhadores em unidades de saúde? 
Rosangela Gaze: Resultados de estudos epidemiológicos para investigar associações causais entre o Sars-CoV-2 e a ocorrência da infecção (com ou sem manifestação clínica) em trabalhadores de setores produtivos específicos não estão disponíveis até o momento nas bases bibliográficas nacionais e internacionais consultadas. Independentemente de fatores causais específicos, o objetivo central da Saúde do Trabalhador é garantir condições de trabalho dignas sem risco de adoecimento e morte. A relação da Covid-19 com o “fator de risco” aglomeração está bem estabelecida e válida para trabalhadores de todos os setores produtivos. Artigo publicado na Revista Lancet fundamenta dez razões científicas que apoiam a transmissão aérea desse vírus. Alertam ainda para o fato de que os EPIs, rotineiramente utilizados em unidades de saúde (e escassos), são projetados para proteção à exposição por gotículas, mas insuficientes para evitarem a transmissão aérea. Jornais têm divulgado decisões da Justiça do Trabalho favoráveis ao entendimento de que a Covid-19 seja considerada doença ocupacional, como no julgamento do TRT-2 (SP), sobre a ação do Sindicato dos Correios, e do TRT-3 (MG), sobre indenização à família decorrente de óbito de trabalhador de transportadora. A Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho-LDRT, atualizada em agosto de 2020, incluía o Sars-CoV-2 entre os “agentes e/ou fatores de risco biológicos” e a respectiva “doença causada pelo coronavírus Sars-CoV-2 Covid-19”. Esta LDRT de 2020 (tornada sem efeito dias depois) respalda a relação da Covid-19 com o trabalho, visto que a atualização, que atende à Lei 8080/90, esteve balizada na análise de expertises e de trabalhadores. A LDRT não se propõe a definir nexo causal para fins previdenciários. Os agravos listados podem se originar de situações/exposições de risco nos ambientes/processos/organização do trabalho ou ter o trabalho como variável desencadeadora de adoecimento e/ou morte. 

A: Como o Brasil se apresenta no cenário mundial com relação aos números de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho? A subnotificação é uma realidade? Se sim, os dados conseguem estimar essa subnotificação?
RG: A comparação estatística de número de acidentes de trabalho entre países, mesmo com indicadores de morbimortalidade padronizados em taxas, segundo a população, é de utilidade limitada. A ocorrência de acidentes típicos e de agravos relacionados ao trabalho decorre de múltiplos fatores combinados em complexa e dinâmica rede de eventos determinantes das relações saúde-trabalho-doença. A precarização estrutural do trabalho e o perfil produtivo brasileiro submetem trabalhadores a um processo de se acidentar, adoecer e morrer em silêncio no trabalho para manter (sub)empregos. A subnotificação é uma realidade no Brasil e em muitos países, aqui agravada pela histórica negligência quanto à centralidade do trabalho na determinação social do processo saúde-doença e pelo descompasso entre discurso e prática em relação à Vigilância em Saúde e seus componentes (Vigilâncias em Saúde do Trabalhador, Epidemiológica, Sanitária, Ambiental). Mais do que estimar índices de subnotificação, esta pode ser significativamente minimizada com o aperfeiçoamento e preenchimento correto e completo de formulários, incorporando-se o campo ocupação a todos estes; o cruzamento de dados dos diversos sistemas de informação e construção de indicadores; a desburocratização do acesso à notificação; educação permanente de Vigilância em Saúde nas equipes da atenção básica; e o desenvolvimento de aplicativo para dispositivo móvel de acesso a todo cidadão.

A: Quais setores apresentam os piores índices de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho?
RG: Para os trabalhadores celetistas brasileiros, entre os anos de 2012 e 2018, no total de 623,8 milhões de notificações, os cinco setores econômicos com maior número de acidentes de trabalho são atividades de atendimento hospitalar, comércio varejista de mercadorias, administração pública em geral, construção de edifícios e transporte rodoviário de cargas. (Veja tabela abaixo). As notificações passivas de dados, ainda que compulsórias, são influenciadas, dentre outras, pelo quantitativo de trabalhadores em cada setor produtivo e pelo conhecimento dos métodos e interesse em proceder a notificação. Os dados da tabela não refletem graduações de risco. Para esta estimativa, o sistema da Dataprev (CAT) precisa divulgar análises padronizadas do número de acidentes notificados pelo número de empregados de cada atividade econômica.

Fonte: Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho/MPT-OIT.

A: Há relação entre notificação de acidentes de trabalho ou doenças relacionadas ao trabalho e a análise de risco ocupacional da empresa?
RG: A notificação de acidentes de trabalho ou doenças relacionadas ao trabalho e a análise de risco ocupacional costumam ser realizadas pelo SESMT (Serviço Especializado de Engenharia e Medicina do Trabalho) da empresa e/ou por serviços de saúde ocupacional terceirizados que produzem os mapas de riscos sem a participação dos trabalhadores. Esta participação, inclusive, pavimenta-se no necessário envolvimento dos trabalhadores para a construção do sentido de pertencimento, originado no Modelo Operário Italiano e inspirador dos fundamentos da Saúde do Trabalhador no Brasil. O trabalhador conhece os riscos de sua atividade, e delegar o mapeamento a outrem fere esses princípios. A análise de risco ocupacional assenta-se à medicina do trabalho e à saúde ocupacional que, ao visarem atender “restritamente” os limites de segurança e saúde que preservam a força de trabalho da empresa, e ao arcabouço legal da previdência social, tratam o empregado como “segurado” submetido às regras (e exclusões) de reparação de danos.

A: Os trabalhadores brasileiros, salvo os profissionais de saúde, foram alijados da etapa inicial de vacinação contra o coronavírus, que priorizou grupos etários. Mesmo a vacinação de profissionais de saúde excluiu trabalhadores que compartilham do mesmo ambiente de trabalho e estão igualmente expostos à contaminação, como os auxiliares de serviços gerais e vigilantes. Como analisa a distinção em relação a trabalhadores em atividades consideradas essenciais e quais efeitos que ela acarreta em um contexto de escassez de vacinas?
RG: A aquisição e distribuição de vacinas contra a Covid-19 está submetida ao negacionismo da pandemia e obscurantismo científico que dominam as decisões deste governo. Numa demonstração de desprezo para com as classes sociais menos favorecidas, inclusive pela classe trabalhadora essencial, mas silenciada pela precarização estrutural, privilegia sem o menor pudor as classes sociais mais favorecidas. A escolha de quem deve ser vacinado primeiro, diante da escassez de vacinas decorrentes do planejamento ausente e irresponsavelmente omisso, foi imposta à classe trabalhadora como uma aparente prioridade científica de grupos vulneráveis, para encobrir a ausência e acovardamento no enfrentamento com os setores econômicos hegemônicos na condução das políticas públicas. Todas as atividades efetivamente essenciais em situações de lockdown constituem atividades de trabalhadores em situação de vulnerabilidade extrema. Fato que foi e continua sendo negligenciado até agora.

A: Como o Brasil pode construir um futuro com redução de acidentes de trabalho e doenças relacionadas ao trabalho?
RG: Respeitando o estabelecido na CRFB 1988, nas Leis Orgânicas da Saúde, na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora e efetivando as ações sistemáticas da Vigilância em Saúde do Trabalhador-Visat normalizadas pela Instrução Normativa de Vigilância em Saúde do Trabalhador no SUS. Assim, a redução de acidentes de trabalho e doenças relacionadas ao trabalho pode ser construída através das ações de Visat que, na conceituação legal, “é uma atuação contínua e sistemática, ao longo do tempo, no sentido de detectar, conhecer, pesquisar e analisar os fatores determinantes e condicionantes dos agravos à saúde relacionados aos processos e ambientes de trabalho, em seus aspectos tecnológico, social e organizacional e epidemiológico, com a finalidade de planejar, executar e avaliar intervenções sobre esses aspectos, de forma a eliminá-los ou controlá-los”.

Na semana passada, a Diretoria de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1 entrevistou o auditor-fiscal do trabalho Luiz Scienza, presidente do Instituto Trabalho Digno (ITD). Clique aqui para ler a entrevista. < VOLTAR