29 de março de 2021 . 10:30

Violência contra as mulheres é tema de artigo da juíza Márcia Leal

A juíza do Trabalho Marcia Regina Leal Campos publica, nesta segunda-feira (29), o artigo “Lar ou prisão?”, encerrando a coluna “Mulheres, por elas mesmas”. A reflexão da titular da 1ª vara de Teresópolis partiu do filme iraniano “O Apartamento” (2016), abordando as violências físicas e psicológicas enfrentadas por mulheres de diferentes culturas.

O artigo integra o projeto elaborado pela Diretoria de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA1 para marcar o mês do Dia Internacional da Mulher, 8 de março. Ao longo do mês, artigos de magistradas de diferentes perfis foram divulgados no site da associação, toda segunda-feira. Veja os outros textos no fim da página.

“Lar ou prisão?”, por Márcia Leal

Convidada a escrever sobre minha experiência “cinematográfica” pela Diretoria da AMATRA1, no projeto “Mulheres, por elas mesmas”, experimentei uma mistura de sentimentos. Um novo desafio. Perguntei-me o motivo. A escrita é a minha principal ferramenta de trabalho. Usar as palavras, agrupá-las, conectá-las aos casos reais não é desafio. Faço isso cotidianamente. Um pequeno detalhe, porém, travou meu relato. Agora é pessoal; é sentimento; é emoção; é sangue nas veias. Frio na espinha e branco total.

Como mulher que não foge à luta, aceitei.

O segundo passo era escolher a obra. Tantos têm sido os livros e filmes que estou assistindo nos últimos meses que escolher uma única obra parecia significar desistir das outras.

A paixão pelo cinema iraniano, em especial pelo diretor Asghar Farhadi, encerrou o dilema e fez-me optar por comentar, de forma leiga e descompromissada, “O Apartamento”, filme de 2016, ganhador de importantes prêmios, dentre os quais o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2017. 

Temas reincidentes: a violência contra as mulheres, as ruínas dela decorrentes e os conflitos morais nas sociedades modernas. Como pano de fundo, a organização da sociedade e cultura iranianas e seu fundamento na religião.

Um casal de atores de teatro, Rana e Emad, que encena “A Morte de um Caixeiro Viajante”, de Arthur Miller, é obrigado a desocupar, emergencialmente, o imóvel em que reside, em razão da ameaça de desabamento do prédio, ocasionada por uma escavação no terreno vizinho.

Rana e Emad aceitam a oferta de um colega e mudam-se para um apartamento, antes ocupado por uma mulher que, segundo percepção dos vizinhos, era prostituta, porque recebia “clientes”. Chama a atenção, inclusive, que o filme, em francês, recebeu o nome “Le Client”. 

Logo após a mudança, Rana, ao ouvir o toque do interfone, pensando ser Emad, destranca a porta e é agredida por um homem estranho.

As cenas da agressão não são mostradas, deixando à imaginação dos espectadores sua construção. 

Além da dor física, posto que Rana fica muito ferida, enfrenta ela a acusação velada de ter autorizado a entrada do homem estranho no apartamento, além de experimentar o abandono emocional de Emad.

Os diálogos fortes e as encenações da obra de Arthur Miller, metafórica e propositadamente utilizados pelo diretor de “O Apartamento”, revelam a condição patrimonial a que se reduzem as mulheres, não raramente, assemelhando-se às ruínas decorrentes do desmoronamento do antigo apartamento. A ameaça de desabamento simboliza a fragilidade dos conceitos e conflitos morais e a rachadura das relações sociais e familiares. 

A certeza de posse que Emad tem em relação a Rana, e a violação desse direito, demonstram a coisificação da mulher em plena modernidade. São esses sentimentos que movem Emad a descobrir quem é o responsável pela agressão física, sem perceber que maior agressão está ele próprio cometendo, ao ignorar o que realmente angustia Rana, seus traumas, seu medo, sua fragilidade e o sofrimento que experimenta ao ter que continuar morando no mesmo apartamento e revivendo a violência. 

O desenrolar e o desfecho surpreendem, característica das obras de Asghar Farhadi. E, apesar da distante cultura iraniana, não se diferenciam do comportamento da sociedade “ocidental”, “laica” e “moderna”. O direito à vingança, assegurado ao marido desonrado, predomina. Não é à toa que, ainda nos dias atuais, discute-se o conceito e a propriedade de “legítima defesa da honra” como atenuante no Direito Penal. 

Ao término da sessão, não consigo parar de pensar na realidade brasileira. Mulheres violentadas e assassinadas por familiares, parceiros, maridos, estranhos, todos os dias e, embora vítimas, equiparadas a números e empilhadas em tantas fileiras de casos arquivados, quando não responsabilizadas, em razão do uso de vestimentas ou de comportamentos “inadequados”. Impossível não me reconhecer em uma ou tantas passagens do filme. Ou da realidade. Aliás, essa é uma característica das obras do diretor Asghar Farhadi. A ficção meio realista, a humanidade e simplicidade das personagens, a identificação do comportamento do “homem comum”. Algo se encaixa nas nossas vidas.

Daí o desconforto que me causa “O Apartamento”. Baseia-se nos costumes iranianos, que, apesar de tão distantes, são comparáveis à realidade que experimentamos, todas nós mulheres, em cada dia de nossas existências, em qualquer lugar do mundo, quando somos coisificadas e vemos nosso sofrimento ser reduzido a “mimimi”. Desigualdade de direitos, salários inferiores, múltiplas jornadas, direito à maternidade (ou a não maternidade) são questões tão antigas, mas que ainda matam as mulheres.  E a violência não é “só” a física. E, principalmente, não parte “só” de homens desconhecidos. Mulheres também rotulam, acusam, condenam, agridem. Homens do mesmo círculo familiar violentam “suas” mulheres, sejam elas esposas, filhas, enteadas, sobrinhas. 

A última parte de O Apartamento causa-me ainda mal estar maior. 

A vitimização do agressor é tão enfática que convenceu espectadores de que Rana fora culpada pela violência sofrida. Afinal de contas, Rana abriu a porta do apartamento para um homem desconhecido, desnudou-se para recebê-lo. “A carne é fraca” diz o agressor, um homem de meia idade, portador de cardiopatia, pai de família exemplar, marido amado, trabalhador.

O final, que parece nunca chegar, é marcado pelo silêncio estarrecedor de Rana e Emad. O retorno ao teatro e a transformação dos atores para mais uma apresentação da peça “A Morte de um Caixeiro Viajante”, a meu sentir, registram a solução à violência que causou cicatrizes indeléveis à história de Rana. E a vida continua no mesmo rumo.

Resta o propósito de lutar por finais mais felizes para as histórias de todas as Ranas que conhecemos, e que não conhecemos. 

Veja outros textos da coluna “Mulheres, por elas mesmas”:

Áurea Sampaio aborda os impactos da violência doméstica no trabalho

Giselle Bondim trata da invisibilização do trabalho doméstico das mulheres

Aurora Coentro reflete sobre realidade das juízas do Trabalho na pandemia

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