02 de maio de 2019 . 17:57

Artigo de Daniela Muller: Dia do Trabalhador, dia de vida!

Em 1º de maio de 1886, milhares de trabalhadores foram às ruas de Chicago, nos Estados Unidos, reivindicar melhores condições de trabalho. Décadas mais tarde, em 1941, era instituída, na mesma data, a Justiça do Trabalho brasileira. Carregado de simbolismos para o mundo trabalhista e seus atores sociais, o 1º de maio recebeu o título de Dia do Trabalhador. Neste artigo, Daniela Muller, diretora da AMATRA1, reflete sobre a essência do Direito do Trabalho e faz uma análise histórica da luta trabalhista.

Leia o artigo:

Na rotina das relações de trabalho, muitas vezes nos atemos ao cálculo de horas extras, à conferência de recibos salariais e registros funcionais e, com isso, nos distanciamos do significado mais profundo do Direito do Trabalho, que é o da proteção à pessoa que trabalha, faceta que o torna tão especial e cada dia mais necessário.

Muito mais do que regular a burocracia laboral, o Direito do Trabalho surgiu para proteger a pessoa, o ser humano que inevitavelmente está inserido no contrato de trabalho, uma relação onde o trabalhador disponibiliza muito mais do que certa quantidade de força de trabalho. Junto a ela, ele disponibiliza o próprio corpo, sua subjetividade, cansaço, inteligência, medos; enfim, a própria pessoa humana que realiza esse trabalho.

As questões reguladas pelo Direito do Trabalho vão muito além do espaço da produção. Nesse sentido, quando a norma jurídica estabelece um limite para a jornada de trabalho e condições de segurança e saúde do trabalhador, por exemplo, ela está ao mesmo tempo assegurando tempo de vida saudável, tempo de convivência familiar e social, tempo para professar sua fé, para participar de atividades culturais e esportivas; enfim, tempo para ser gente, e não apenas um corpo que trabalha e que é descartado quando não serve mais.

Esse sentido forte do Direito do Trabalho está relacionado à sua origem, que são as lutas e a mobilização dos trabalhadores inconformados com as péssimas condições de trabalho geradas por um mercado sem regulação social. Há tempos já se constatou que “a ficção da mercadoria menosprezou o fato de que deixar o destino do solo e das pessoas por conta do mercado seria o mesmo que aniquilá-los.” 1

Ao perceber que “o mercado, deixado a si mesmo, tende a adaptar a marginalização de alguns e torná-la produtiva e funcional para os estratos superiores”2, os trabalhadores passam a se organizar para exigir que a Lei cumpra seu papel cidadão de concretizar as garantias prometidas desde os primórdios do sistema liberal, de garantir uma vida minimamente boa, com dignidade e liberdade para todas e todos, ao invés de apenas permitir a funcionalidade da miséria em prol de poucos abastados.

Foi a mobilização de milhares de trabalhadoras e trabalhadores, através das lutas sindicais coletivas, que possibilitou ao Direito assumir a função de proteger o ser humano, o corpo físico e mental inserido no “obscuro objeto do contrato de trabalho”. A norma jurídica, nesse sentido, serviu para limitar a sujeição do ser humano, reduzir a carga e as condições mortíferas de trabalho e, desse modo, atuar como instrumento de bem-estar.

Uma peculiaridade da técnica jurídica que permitiu tornar humanamente vivível o maquinismo industrial; o direito, aqui, funcionou como uma “ferramenta interposta entre o Homem e suas representações, [...> o Direito cumpre assim uma função dogmática – de interposição e de proibição. Essa função confere-lhe um lugar singular no mundo das técnicas: a de uma técnica de humanização da técnica.”3

No Brasil, a luta pelo estabelecimento dos direitos sociais e trabalhistas se entrelaça à luta pelo fim do trabalho escravo. O avanço da legislação social está diretamente ligado à mobilização social, tanto para a eliminação do “elemento servil” (eufemismo da época para designar trabalho escravo), quanto para o estabelecimento de garantias mínimas aos trabalhadores livres sem patrimônio. As mulheres são protagonistas nessa mobilização, pois foram as operárias da indústria têxtil de São Paulo que iniciaram a paralisação que deu origem à primeira greve geral brasileira, realizada em 1917.

Mas as normas legais, especialmente as de cunho social, valem pouco se não têm efetividade. O surgimento da Justiça do Trabalho, portanto, está relacionado à política pública necessária para concretizar a proteção legal aos trabalhadores, através de acesso ao Poder Judiciário e de um processo ágil, uma verdadeira política pública de Estado, construída por décadas pela sociedade e que, por isso, vai muito além das transitórias políticas de Governo e de necessidades circunstanciais.

Neste primeiro de maio, é tempo de relembrar a origem de lutas através das quais se constituíram o Direito e a Justiça do Trabalho e reafirmar o compromisso social de dar plena efetividade aos direitos duramente conquistados pela classe trabalhadora e necessários para a realização de uma vida digna e minimamente satisfatória.

1. POLANYI, Karl. A grande transformação. As origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2001 – 3ª edição. P.162.

2. SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. p.57.

3. SUPIOT, Alain. Homo juriducus. Ensaios sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 144. < VOLTAR