05 de fevereiro de 2021 . 15:13

Escravidão é reduzir o humano à condição de ‘coisa’, diz juiz do Trabalho

O bate-papo “Vivências no Combate ao Trabalho, Escravo no Brasil”, promovido pela AMATRA1 e pela AMATRA8 nesta quinta-feira (4), reuniu integrantes de instituições que atuam pelo fim da prática criminosa. Mediados pela juíza do TRT-1 Luciana Vanoni, o juiz do TRT-8 (PA/AP) Jônatas Andrade, a procuradora do Trabalho no Rio de Janeiro Guadalupe Turos e o auditor-fiscal do Trabalho Alexandre Lyra comentaram suas experiências nas ações que buscam retirar trabalhadores de condições desumanas. O encontro, motivado pelo Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, em 28 de janeiro, foi transmitido no canal da AMATRA1 no YouTube, no Facebook da associação e também na página da AMATRA8.

O magistrado Jônatas Andrade afirmou que o escravo clássico não tinha sua humanidade reconhecida, não era considerado uma pessoa, e o fato se repete também no trabalho escravo contemporâneo.

“O conceito de humanidade só nasce na nossa era, após a moral kantiana. O escravo era considerado uma coisa, um animal. Quando nos apropriamos desse conceito, fica mais fácil entender a condição da escravidão — toda vez que alguém reduz um humano à condição de coisa, de animal”, disse.

Citando o professor de Sociologia do Trabalho Ricardo Antunes, da Unicamp, a magistrada Luciana Vanoni falou sobre a potencialização da corrosão do trabalho em escala global, mais especialmente na América Latina. E abordou duas características que ajudam a compreender o universo do trabalho na atualidade.

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“O professor aponta a desregulamentação — algo que nós, da área trabalhista, vemos diuturnamente — que começa a minar as antigas bases de proteção que, antes, mediavam a relação de capital e trabalho. A desregulamentação vai gerar formas de trabalho precarizado. Associado a isso, tem-se o desemprego, que não é só estrutural, mas também conjuntural em números alarmantes.” 

Atualmente, é possível ver evolução na solução do problema, mas ainda há muitos desafios a serem superados, afirmou Guadalupe Turos, que atua há 20 anos no Ministério Público do Trabalho (MPT) e no combate ao trabalho escravo. 

“Tivemos recentes ações trabalhistas que foram precarizantes. E o fato de estarmos em uma sociedade capitalista fortemente atada a laços psíquicos e sociais da escravidão, e que nega a existência desse problema, é muito importante que as instituições debatam o tema e que possamos atuar em conjunto”, ressaltou.

Trabalho escravo dentro das casas

Ao destacar os setores de grande incidência de trabalho análogo ao de escravizados, a procuradora do Trabalho apontou o trabalho escravo doméstico, comum principalmente nos grandes centros urbanos. Segundo Guadalupe, o cenário da exploração de empregadas domésticas sempre existiu, mas passou a ser mais denunciado a partir da grande exposição midiática do caso de Madalena, mulher resgatada em Minas Gerais após 38 anos prestando serviços em situação degradante. “O trabalho escravo doméstico está extremamente ligado à escravidão da era colonial”, disse. 

“O grande desafio para esse tipo de investigação é que acontece no âmbito domiciliar e existe a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio. Então, como poderíamos agir, fiscalizar e colher provas se está no âmbito do domicílio? Pensando nisso, buscamos jurisprudência no Supremo Tribunal Federal no sentido de que a inviolabilidade do domicílio é um direito fundamental, mas, segundo o próprio STF, não existe direito fundamental absoluto e ele pode ser relativizado diante de outros direitos fundamentais”, completou. 

Recentemente, três mulheres foram libertas do trabalho escravo doméstico no Rio de Janeiro em uma Operação Resgate articulada pelo MPT, pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério da Economia, pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Defensoria Pública da União (DPU). O auditor-fiscal do Trabalho Alexandre Lyra estava presente no momento em que a empregadora atendeu a equipe e informou que a empregada doméstica não estava no local. 

“Isso nos leva a crer que ela tinha o direito de ir e vir, que estava livre. Mas ela não estava porque saía para catar latinhas. Nas contas da empregada vítima, ela juntava cerca de seis reais com a venda das latinhas e, na conta da empregadora, eram 20 reais. Esse dinheiro não ficava com a empregada vítima, mas era entregue à empregadora - que já havia confessado ter ficado com a primeira parcela do auxílio emergencial da empregada”, relatou. 

Segundo Alexandre Lyra, a mulher de 63 anos, que trabalhava havia 41 anos para a mesma família, dormia em um quarto sem luz e, sem relógio, situava-se no tempo pelo sol: sabia que estava na hora de acordar quando o sol nascia e que estava na hora de se recolher quando o sol se punha. Já a outra vítima, contou Lyra, “não tinha um espaço para chamar de seu”.

“Não tinha dependência de empregada e ela dormia no colchonete ao lado da cama de uma senhora com Alzheimer. Porque, além de todas as tarefas domésticas, ela cuidava dessa senhora. A vítima dormia às 20h, quando a senhora dormia; acordava às 2h porque a idosa queria ir ao banheiro; e, às 7h, tinha que levantar”, disse.

Para o juiz Jônatas Andrade, o principal desafio é o fenômeno da naturalização, arraigada na formação. “A luta emancipatória do trabalhador é recente. No sul do Pará, uma pessoa alegou, em uma reunião com empresários locais, que o trabalhador vivia em piores condições em sua casa do que na fazenda. Isso naturaliza o processo. Nosso desafio emancipatório é o de evolução.”

Veja o bate-papo na íntegra:
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