29 de março de 2022 . 12:40

‘Mulheres, que são maioria da população, são tratadas até hoje como minoria’

Encerrando a coluna “Mulheres, por elas mesmas” deste ano, a juíza aposentada Edna Kauss publicou o artigo “Elisa e Iracema, doces mulheres”, nesta terça-feira (29). Resgatando a história de sua origem nordestina, Edna falou sobre a dedicação da avó e da mãe com a numerosa família. A magistrada aposentada também abordou a invisibilidade do trabalho das mulheres do século passado – que persiste até hoje – e pontuou que a discriminação é imposta não apenas pela condição do gênero, mas também pelo estrato social, etnia, origem e religião. A coluna é uma ação elaborada pela Diretoria de Direitos Humanos da AMATRA1, para marcar o mês do Dia Internacional da Mulher.

Elisa e Iracema, doces mulheres

por Edna Bezerra de Mello Kauss

Ninguém sabia ao certo a idade de Elisa. Ela não tinha documentos, mal sabia assinar seu nome. Nascida em Santa Cruz, cidade do Rio Grande do Norte, no sertão do Seridó. Lourinha de olhos azuis, certamente descendente dos holandeses que fugiram e se embrenharam Nordeste adentro quando fracassou a ocupação holandesa de sete anos da Capitania de Pernambuco que abrangia os territórios dos atuais estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Alagoas e a porção ocidental da Bahia, e governada por Maurício de Nassau, com sede no Recife. 

Mocinha, Elisa conheceu Félix. Mas os pais de Elisa decidiram se mudar com toda a família para o Pará. Na madrugada do dia programado para partirem, Félix passou a cavalo e levou Elisa. Ficaram escondidos até que a família de Elisa viajasse. Isso foi na primeira década no século 20. Casaram e tiveram 7 filhos. 

Só Iracema, que nasceu em 1916, conseguiu chegar à idade adulta. Iracema frequentou a escola, apenas o primário, como era comum às meninas naquela época. Tinha uma letra linda e gostava de desenhar árvores. Costurava, pintava e bordava muito bem. Vem daí o meu interesse pela arte?

Aos 19 anos Iracema casou-se com Creso, médico recém-formado, que conheceu numas férias que passou em São José de Mipibu, onde os pais de Creso moravam e lecionavam, vindos de Natal.  A sogra de Iracema, Judith, formou-se professora em 1910 — quando as mulheres não mantinham ocupação fora de casa — na mesma turma de Severino, com quem se casou. Tiveram 8 filhos e criaram ainda dois sobrinhos, órfãos de mãe. Mais tarde fundaram um colégio em Natal.

Elisa e Félix continuaram a viver em Santa Cruz, mas logo Félix morreu e Elisa, sem recursos, foi viver com Iracema e Creso, que já tinham a primeira filha, e depois mais cinco, sendo eu a quarta.

Vovó Elisa sempre foi nossa outra mãe, cuidava da gente como se fôssemos seus filhos. Natal é uma cidade de brisa constante. Moramos lá até os meus 10 anos, quando viemos todos para o Rio de Janeiro. De noite, Elisa se levantava e ia ver, um a um, se os netos estavam cobertos, protegendo-nos do vento da madrugada. E nos dava tanto carinho! Não me esqueço desses seus gestos. E sinto falta. A mim, aos meus irmãos, aos primos, aos amigos, aos namorados das netas, às namoradas dos netos, às bisnetas e aos bisnetos, quem chegasse perto recebia o carinho de Elisa. De longe, nos lançava um olhar meigo. E todos se lembram de sua doçura.

Voltando da escola, quando pequenos, era ela quem nos banhava e nos secava. E lavava nossos pés e mãos antes de irmos dormir. “Mariazinha lavou a mãozinha, o pezinho e foi se deitar”, era como nos convencia a dormir limpos depois das brincadeiras noturnas. As mãos ensaboadas nos limpavam, nunca passava o sabonete direto nos nossos corpos. Por economia, provavelmente, resquício dos tempos de pobreza que vivenciou. Ou para não desgastar a pele. Até hoje faço assim.

Iracema, minha doce mãe, cuidava de outras tarefas em casa, preparava a comida da família com a cozinheira, saía para compras, costurava nossas roupas num tempo em que era incomum comprar roupa pronta, só os muito ricos tinham acesso a isto.  E nos dava carinho e cuidados também.  Arrumava tempo para tudo!

Ela e vovó Elisa fizeram nossos uniformes escolares e todas as nossas roupas durante muito tempo. Íamos em janeiro na fábrica da Nova América, em Del Castilho, hoje um shopping, comprar tecidos para nossos uniformes e roupas e também para fazer toalhas de banho e roupas de cama e mesa.  Tudo era feito em casa. Falo dos anos 1950 e 1960, numa família grande de classe média. Os gastos maiores eram destinados à nossa educação. 

Recordo que, quando ganhei uma bolsa de estudos e fui morar um ano (1963-64) na Califórnia, levei um enxoval feito por elas. Muito magrinha, engordei 7 quilos de tanta comida industrializada e ultraprocessada. Precisei de novas roupas mas o dinheiro era pouco. A família com quem eu morava também não tinha muitos recursos. Mais um enxoval foi providenciado e trazido por um piloto da Varig conhecido da família. Tempos de comunicação difícil. Perdi o excesso de quilos ao voltar e comer comida decente. Ainda não havia agrotóxicos, ou havia pouco uso, nem alimentos transgênicos no Brasil. Hoje somos o país que mais se utiliza de agrotóxicos.

As mulheres trabalhavam muito e mesmo assim o que faziam não era tido como trabalho produtivo. Só o que produzia dinheiro era – e ainda é — considerado trabalho! 

As mulheres, que são maioria da população, são tratadas até hoje como minoria, não obstante nossa luta longa e intensa pelo reconhecimento como iguais em direitos. Luta que tem sido constante, diária, em casa, na rua, na condução, nas escolas e universidades, nos locais de trabalho. É certo que obtivemos importantes conquistas à custa de muito esforço e revolta, mas muitas vezes nos deparamos com situações que custamos a acreditar serem ainda possíveis de acontecer. A discriminação é imposta não apenas pelo fato de sermos mulheres, mas também e mais ainda por eventualmente sermos mulheres de diferente estrato social, etnia, origem, religião, ou seja, tudo o que é vedado pela Constituição.

Sem querer puxar brasa para a minha sardinha nordestina, mas puxando, neste mês da mulher e neste ano eleitoral trago dados pouco conhecidos sobre duas mulheres pioneiras: a primeira eleitora registrada — Celina Guimarães Viana, 29 anos, em 1927 — e a primeira eleita — Alzira Soriano, 32 anos, em 1928 — são mulheres norte-riograndenses:

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/11/27/interna_politica,1215145/a-historia-de-alzira-soriano-primeira-mulher-virar-prefeita-no-brasil.shtml 

https://www.camara.leg.br/noticias/704329-voto-feminino-foi-conquistado-depois-de-uma-luta-de-100-anos/ 

Avante! Sem perder a doçura.

Veja outros textos da 2ª edição da coluna “Mulheres, por elas mesmas”:

‘Maria Alice deixou as mais valiosas lições de vida para sua família’

‘Heroína do Sertão’: a luta de Maria Quitéria contra os padrões impostos

‘Estamos aqui: filhas, companheiras, mães, amigas, magistradas e mulheres’

‘Sylvia queria romper o padrão, expressar suas ideias em vez de seguir a manada’ < VOLTAR