22 de março de 2022 . 15:53

Congoleses sofrem para encontrar trabalho no Brasil, diz Sarah Mbuyamba

Racismo e falta de políticas públicas foram fatores apontados como causas da precarização das condições de trabalho de refugiados no Brasil na live promovida pela AMATRA1 na segunda-feira (21). Com mediação da juíza Daniela Muller, diretora da associação, a congolesa Sarah Mbuyamba, que morou no Brasil por 10 anos, a procuradora do Trabalho Cristiane Sbalqueiro Lopes e o professor da UFRJ Ricardo Rezende debateram o tema partindo do assassinato do congolês Moïse Kabamgabe, no Rio de Janeiro. O encontro foi transmitido nos canais da AMATRA1 no YouTube e no Facebook. 

Aos 24 anos, Moïse Kabamgabe, natural da República Democrática do Congo, foi espancado a pauladas em 24 de janeiro, na orla da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ele havia ido ao quiosque onde prestava serviços para cobrar duas diárias de trabalho. Moïse morava no Brasil desde 2011.

“Esse terrível caso recente trouxe à tona a questão envolvendo desrespeitos aos trabalhadores refugiados. O refúgio é um instituto do Direito internacional e humanitário que visa garantir a vida, a sobrevivência e a integridade física das pessoas que, por pertencerem a um determinado grupo – religioso, étnico ou nacional –, são perseguidos e correm risco em seu país. Por isso, inicia-se um processo forçado de imigração e a luta para se estabelecer e conseguir um trabalho, que é um direito fundamental e necessário para que os refugiados sobrevivam e se integrem no país que o recebeu”, afirmou Daniela Muller.

A magistrada pontuou, no entanto, que nem mesmo quando refugiados conseguem vagas com assinatura na carteira de trabalho, há garantia de que os direitos serão respeitados. “Mesmo na época em que havia mais oferta de emprego, ficava evidente que, para os congoleses, eram reservadas as piores vagas – horários noturnos, funções mais desgastantes, por exemplo.”

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Atualmente cursando doutorado na Universidade Laval, no Canadá, a congolesa Sarah Mbuyamba morou no Brasil de 2010 a 2021, onde cursou a graduação em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e o mestrado em Políticas Públicas e Direitos Humanos pela UFRJ. Em sua dissertação, investigou as políticas públicas voltadas aos congoleses refugiados no Rio de Janeiro e a situação de trabalho desse grupo. O trabalho contou com entrevistas com refugiados para saber as situações que enfrentavam para encontrar empregos.

“Perguntei se recebiam auxílio por parte do governo para se inserir no mercado de trabalho, se eram oferecidos cursos de profissionalização. Mas não existe. A Cáritas oferece curso de Português e programas para ajudar os refugiados, mas o governo do Rio de Janeiro não tinha programas voltados para os refugiados congoleses”, contou.

A convite do professor Ricardo Rezende, ela também pesquisou as condições de trabalho dos congoleses no estado do Rio, de janeiro de 2018 a dezembro de 2019. Foram entrevistados 26 cidadãos do Congo, majoritariamente refugiados, e auditores fiscais do Grupo Móvel de Inspeção do Trabalho.

“Concluímos que os refugiados congoleses tinham dificuldade de se inserir no mercado de trabalho, sofriam preconceitos não só pela questão racial, mas pelo status de refugiado também. Quem ainda estava com o pedido de refúgio em andamento tinha ainda mais dificuldade porque não tinha documento oficial, a carteira de identidade, mas apenas um protocolo que precisava apresentar ao empregador que, normalmente, não reconhecia como documento.”

Mesmo com bom nível de escolaridade e profissionalização no Congo, os refugiados não conseguiam vagas nas áreas em que eram especialistas, indicou Sarah. As mulheres atuavam, em maioria, em trabalhos manuais, e os homens, em funções braçais, como a de carregar e descarregar produtos alimentícios em caminhões. “As condições, em geral, eram muito precárias, assim como o salário. Conseguimos ver que os congoleses sofrem para se inserir no mercado de trabalho no Brasil. Sofrem por serem negros, por não haver uma política que ajuda a revalidar o diploma para que seja reconhecido no Brasil, e outras razões.”

No decorrer da pesquisa desenvolvida com Sarah, o professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) da UFRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo, Ricardo Rezende, foi ao Congo para conhecer as tradições dos congoleses em sua terra natal e, assim, poder entender seu comportamento no Brasil. Um dos principais fatores que percebeu no país africano foi a ausência da discriminação baseada na cor da pele. “O problema do racismo não existe. Eles conhecem o racismo ao chegar ao Brasil”, afirmou.

Para a procuradora do Trabalho Cristiane Lopes, integrante da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo), o brasileiro médio não tem noção da intensidade e da gravidade das camadas de discriminação enfrentadas pelos refugiados durante a vivência no Brasil. De acordo com Cristiane, o preconceito começa com a raça, mas também passa pela questão do gênero e de que as pessoas veem o imigrante como subalterno. 

“É uma subalternização que faz com que cheguemos a casos como o do Moïse. É chocante termos médicas congolesas no Brasil não podendo exercer a Medicina. E isso não é só no Brasil: a maioria dos países do mundo intencionalmente cria barreiras ao conhecimento de competências e habilidades de pessoas migrantes. É um desperdício de potencialidade humana”, disse.

O atual momento político e econômico, em especial, piora o cenário para os refugiados, segundo o professor da UFRJ. “Temos um problema de estrutura de política pública, que é insuficiente e insatisfatório; alta taxa de desemprego; racismo exacerbado, inclusive com discursos de supremacistas brancos.” A situação agrava ainda mais para refugiados negros, completou. “A probabilidade de um sírio, que é branco, obter um trabalho, inclusive melhor remunerado, é maior do que a do africano, a quem são destinados trabalhos pesados, já que, no imaginário brasileiro, o africano é mais forte e pode pegar pesos que o brasileiro não consegue. Isso gera problemas de saúde, pois passam a carregar pesos que também não suportam.”

Para a procuradora do Trabalho Cristiane Lopes, deve haver atuação com olhar diferenciado dos agentes do Direito do Trabalho, por se tratar de situação que envolve pessoas vulneráveis: imigrantes negros em um país racista e xenófobo como o Brasil. 

“Precisamos falar de trabalho escravo. O acidente de trabalho que vitimou o trabalhador de nacionalidade congolesa Moïse aconteceu e será julgado pela Justiça do Trabalho. O próprio prefeito do Rio de Janeiro disse que era importante fazer justiça e que a prefeitura concordava em fazer justiça nesse caso. Agora, pergunto a quem vai julgar e processar: até onde vamos reconhecer as responsabilidades no caso Moïse? De quem são as responsabilidades? Vivemos um contexto de precarização do trabalho e já sabemos que, embora Moïse prestasse serviços habituais desde 2018, ele não era registrado. Vamos dizer que não havia vínculo de emprego porque ele prestava serviço de natureza eventual?”, indagou.

Assista a live na íntegra:
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